CORREIO POLICIAL

 

Publicação: “Correio do Ribatejo”

Coordenação: Domingos Cabral

 

Data: 7 de Outubro de 2011

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PROBLEMA POLICIAL

 

ASSADO ESTURRADO

Autor: M. Constantino

 

Desmontou. Um tanto trôpego pelos movimentos incertos do cavalo, o avô Palaló conduziu o animal a beber. Lavou as mãos ásperas na pia da besta. Aprumou o tronco atarracado, olhando o largo pátio cimentado onde o fraco sol outonal se reflectia no horizonte. Tirou a sela e o cabeção, colocou-os sobre o fardo de palha à porta da cavalariça, para onde o cavalo se esgueirou lesto.

Encaminhou-se vagarosamente para casa. Do casarão chegavam-lhe as vozes, o agradável cheiro a comida, batidas das colheres no fundo da grande malga. Ali o almoço começava cedo, pois cedo se iniciava o trabalho.

Espreitou ao passar. Manel Hortelão, Zé do Pipo, Miguel das Vacas, um rapazote de voz efeminada – o Geraldinho, – os dois ganhões ocasionais – Toino da Rosa, um latagão tão gago como valente, e o MesquitaEspanhol”, que atravessara a fronteira ia para seis semanas, fugindo a um caso de amor mal sucedido, dizia-se. Entretidos com o almoço, não foi notado. A meia dúzia de passos, ouvia:

Atão na páras, home?

Ná inda n’acabei!

S’atrabalhasses assim…

Sorriu.

Zefa viu-o entrar e veio a correr, solícita, limpando as mãos ao avental.

Arrumou o chapéu de aba larga, a samarra pesada, o pau de junco ferrado. Calmamente o avô pediu-lhe, cortês, que lhe enchesse a banheira, lhe levasse para a casa de banho roupa lavada, as calças pretas e estreitas de dobra branca, a camisa alva de abotoadura de oiro no colarinho, a jaleca de almares.

Depois do almoço, mandaria aparelhar a parelha das “ruças” à caleche e iria com o Maximiano até à Golegã…

Nunca faltava à Feira de S. Martinho. Apreciava, como bom ribatejano, o desfile dos melhores cavalos da região, as demonstrações da arte de bem montar, os jogos de cabrestos, a exposição de alfaias agrícolas.

A partir da vila, Gouxaria, Alpiarça, Chamusca, Vale de Cavalos, havia paragens ocasionais para abraçar amigos, trocar breves opiniões, ultimar negócios pendentes, fora do ambiente formal e entre galhofa. Um dia cheio – vinho, sol, toiros, cachaporrada…

Ensaboou a cara, relembrando as “voltas” que dera pela manhã. Marcou, mentalmente, a poda na “Azeitada”, talvez um pouco de aveia para a baixa do “Foral Velho”…

Abriu a pequena janela para que o vapor de água da banheira desembaciasse o vidro do pequeno espelho sobre o lavatório.

As vozes dos trabalhadores, no barracão, chegavam-lhe meio nítidas.

Éh Manel, atão na vás c’o patrão ó São Martinho?    

Ná, hoje não.

S’agarrássemos um petisco, anh, pessoal?

Aonde?

Avô Palaló tinha dificuldade em identificar as vozes. Ia ouvindo enquanto se barbeava descuidado.

Olha lá… tá lá um… de três meses… filho da “Estrela”… debaixo d’olho…

Majadero, majadero – interrompeu uma voz.

Ná, ná, na com… na contas comigo – outra voz.

Tás maluco? Vai p’ro corno que ta fez!

A mesma voz tentadora, rouca e arrastada, insistia:

O patrão vai p’rá Golegã, p’rá pândega… tá mesmo na brasa, assado, filho da “Estrela” e do “Malhado” c’a cobriu no dia de S. Frutuoso… e s’a fosse um…

Nim uma coisa nim outra, pára p’raí.

Ah pulha de merda, merecias uma punhada nos cornos! 

Avô reconheceu na última voz o Manel. Ficou satisfeito. Estava, porém, intrigado. Quem seria o candidato a ratoneiro? Talvez o Miguel, um moço esquisito, dos Foros, que voltara da tropa há cerca de quatro meses e que ali trabalhava pela primeira vez. E o que é que aquele safardana queria convencer os outros a assar? Um cabrito? Um bácoro? Talvez um peru! Tinha ali toda a espécie de gado… ora, não seria uma vitela? Merecia isto? Merecia? Aquilo só com uma cachaporrada no lombo!... Mas não, não estava disposto a que lhe estragassem o dia…

Continuou a barbear-se, pensativo.

De repente, pousou a navalha. Foi buscar dinheiro à cómoda e chamou a Zéfa.

Sorria.

– Olha, Zéfa, vai lá ter com o pessoal. Diz ao Manel que abata um bom galo para o petisco do pessoal. Dá este dinheiro ao Zé do Pipo e diz-lhe que tem dez minutos para desaparecer desta casa. Saiu-lhe o assado esturrado; não quero cá ladrões.

Zefa olhava-o, assombrada.

Avô ria abertamente, o que nele era raro. Desvendara o mistério!

– Espera, Zefa. Depois, põe o almoço na mesa e manda engatar as ruças para daqui a meia hora… 

Era assim o Avô Palaló. Meu saudoso avô.

Avô Palaló gostava de mistérios. Agradava-lhe pôr a trabalhar o cérebro privilegiado, arrumando ideias, colocando hipóteses, tirar conclusões. Deleitava-se num bom mistério, como de uma tourada à portuguesa, ou de um varrer de feira à cachaporrada…

Enquanto se barbeava, calma, metodicamente, ciente de que os elementos ao seu alcance seriam o bastante para a resolução do enigma, duas perguntas – a que acabaria por responder – estavam no seu espírito:

– Qual o animal que se apontava para o assado?

– Quem seria o potencial larápio? Sabemo-lo, mas…

– Como o descobriu?

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO