CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 1

 

 

SMALUCO E AS TRÊS AMIGAS

Autor: Smaluco

 

Natália Vaz é uma quarentona de longos cabelos loiros e de penetrantes olhos azuis, cujos traços fisionómicos e dotes físicos deixam perceber quão bela e sedutora terá sido na idade em que o corpo mais desperta sentidos e emoções. 

Na sua adolescência e juventude, foi actriz e bailarina de formação clássica, tendo experimentado as tendências cénicas em moda no pós-Abril de 74, com uma militância sem limites nos grupos independentes nascidos com a revolução, que defendiam um teatro “puro” e sem cedências aos padrões que vigoravam na época.

Natália recusou sempre todas as propostas para fazer televisão e cinema porque detesta as “máquinas”. E levou tão longe o ódio pelas novas tecnologias que ainda hoje repudia o telemóvel e não tolera o computador. Felizmente para ela, a profissão que agora exerce não exige qualquer relação com as “máquinas”: é empregada de balcão numa loja de vestuário feminino, em Sintra.

Natália teve vários amores, arrebatou os corações mais empedernidos e foi cortejada pelos mais disputados solteirões dos anos oitenta, mas hoje vive sozinha num apartamento que coabita com duas velhas companheiras de teatro, que há muito deixaram os palcos para abraçar profissões mais comuns.

Judite Marques tem menos dois anos do que Natália, foi corista no teatro de revista, chegou a ser capa de algumas publicações cor-de-rosa, pela sua beleza e jovialidade, e ainda hoje é exactamente o que aparenta ser: uma mulher sem preconceitos nem tabus, aberta e despreocupada, que dedica grande parte do seu tempo aos que sofrem, agora também como auxiliar de enfermagem numa clínica em Almada.

Rute Lopes é a mais velha e a menos interessante das três, como mulher e artista, de uma vulgaridade confrangedora apesar de muito bonita e formosa, que nos palcos nunca fez mais do que figuração especial em espectáculos do chamado teatro declamado. Hoje é funcionária pública numa repartição de Finanças de Lisboa, e, com a idade, refinou a sua característica mais desagradável: é tão egoísta que instalou o único telefone existente em casa no seu quarto, que mantém sempre trancado quer esteja presente ou ausente.

Elas são muito diferentes entre si, embora, curiosamente, sejam as três do signo Gémeos, nascidas todas no dia 13, número que consideram como seu talismã da sorte, e partilhem há mais de dez anos a mesma casa, as mesmas roupas, os mesmos perfumes e, por vezes, os mesmos... homens.

José Ventura é camionista de longo curso e cometeu a proeza de namorar com as três amigas ao mesmo tempo, sem que nenhuma delas desconfiasse, até ao momento em que Judite o surpreendeu a sair do “quarto-bunker” de Rute, seminu, numa madrugada bem recente. Judite ficou de rastos com aquela descoberta e Natália também, embora o não confesse.

O único desaire amoroso de Natália, que esta reconhece como tal, deixou-lhe marcas profundas e remonta à sua adolescência, quando as circunstâncias da vida determinaram o fim da sua relação com o detective Smaluco, o único homem que ela diz não conseguir esquecer, apesar de já não falar com ele há mais de dez anos. Por isso mesmo, Smaluco nem queria acreditar quando atendeu o telefone e ouviu a voz de Natália.

“Que saudades, meu Deus!”, disse ele num sussurro.

Um turbilhão de recordações emudeceu-o por longos instantes até que Natália irrompeu num choro convulsivo, reclamando a sua ajuda.

“Onde estás?”, perguntou ele.

“Em casa.”

“Não saias daí. Eu vou já.”

Natália deu-lhe a morada e Smaluco, dez minutos depois, estava a seu lado, para a confortar. Mas ela estava verdadeiramente inconsolável.

“Algo me diz que aconteceu uma coisa muito grave com a minha amiga Rute. Durante a manhã, recebi na loja diversos telefonemas de colegas dela, que estranharam a sua falta ao serviço. Eu própria fiquei muito preocupada, porque ela é uma funcionária exemplar, de uma pontualidade e assiduidade irrepreensíveis.”

Natália fez uma pausa para recuperar o fôlego e limpar uma lágrima que se atreveu a rolar-lhe cara abaixo sem aviso prévio.

“Pedi para sair mais cedo da loja e regressei a casa com um pressentimento ruim. Mal cheguei, corri ao quarto de Rute, bati à porta, gritei e... nada! Tenho a certeza que ela está lá dentro. Algo de terrível terá acontecido.”

Smaluco aproximou-se da porta do quarto de Rute, pediu um gancho de cabelo a Natália e enfiou-o pelo buraco da fechadura, enquanto deitava um olhar carinhoso à sua ex-mulher amada. No tempo em que namoravam, eles abriram diversas vezes daquela forma a porta dos quartos dos hotéis onde ficavam hospedados os colegas de Natália Vaz nas digressões que faziam pelo país, para lhes pregar partidas divertidas.

Mal entraram no quarto, deram com Rute Lopes estendida na cama, morta. Alguém a agrediu violentamente na cabeça, enquanto dormia, com uma enorme chave-inglesa que se encontrava caída junto do corpo. Natália desatou num pranto e Smaluco afastou-a para fora do quarto, no preciso momento que entravam em casa Judite Marques e José Ventura, carregados de compras, cantando alegremente. Natália deitou-lhes um olhar furioso, mas eles continuaram festivos e animados. E não era para menos: as três amigas faziam anos nesse dia.

Houve um homicídio naquela casa. Smaluco, que se auto-define como um detective experiente, atento, astuto, diligente, arguto e inteligente, tinha ali, junto de si, a pessoa que cometeu o crime e ainda não tinha percebido. Por favor, ajudem-no...

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 19 de Outubro de 2003 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2003