CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 10

 

 

Solução de:

 

EMENTA: DOIS EM UM

Autor: M. Constantino

 

O presente problema valoriza, de igual modo, os simpatizantes das duas grandes correntes: os defensores do técnico e os que defendem a dedução. Na verdade, estruturalmente técnico, não deixa de ser dedutivo. Sem a técnica, não se chega à solução; e não há solução, se não se aplicar o génio dedutivo.

Adiantando:

Quanto à morte de Elsa, não existem indícios bastantes que levem a outra conclusão que não seja a extraída: suicídio ou acidente. Nunca se colocou a hipótese de crime. Eventualmente, encontramos vagas causas para admitir a primeira hipótese. Não a esqueçamos, porém; continua a ser um dado importante.

As duas outras mortes merecem uma reflexão. Maia e Clemente (por ordem das mortes, no tempo): suicídio ou crime?

Maia – o golpe da esquerda para a direita aponta o uso da mão direita para cortar a garganta; por outro lado, o facto da arma utilizada (B-3) não ter impressões digitais e a mão estar limpa excluem o suicídio e denunciam crime.

Clemente – não há arma nem se encontra a bala no quarto. No suicídio, a arma, disparada a curta distância, deixaria vestígios ou tatuagens na área circundante do orifício da bala, o que não se verifica. Aliás, a bala de pequeno calibre, para atravessar o crânio e criar a velocidade rotativa para destroçar os tecidos cranianos, tinha de ser disparada de longe; opção igual a crime.

Desenvolvendo:

Tudo começa com a chegada de Clemente, franzino e rico sócio capitalista. Clemente quase acusa Maia de ser o vendedor das falsas antiguidades (de facto, para um criado de mesa, ainda que chefe, a posse de um carro desportivo caro, sem que haja conhecimento de lhe ter saído a “taluda” ou o totobola, dá para desconfiar). Apanhado de surpresa, ao prometer descobrir o culpado, pois tinha uma ideia, reconhece, inconscientemente, que o assunto não lhe era desconhecido. Alfredo ouve, por acaso, a conversa e, ao comentá-la diante de Rui, Morais, Laurindo, Marco e Lopes, alerta o cúmplice de eventual traição, por parte de Maia. E aqui voltamos a lembrar Elsa, uma rapariga linda, isolada no silêncio do seu mundo, incapaz de gritar a sua dor; em suma – uma surda-muda. Maia compreendia-a, pois ele próprio tinha um irmão surdo-mudo. Quando Marco observou, com tristeza e cismático, a conversa mímica entre os dois irmãos, é provável (com a irmã muda, também conhecia a linguagem mímica) que ficasse com a certeza de que Maia se preparava para “safar-se” e seria ele, Marco, o sacrificado.

A prova B-4, encontrada no fogão do quarto de Maia, coincidente com a B-1 no pé da cama que esteve no mesmo quarto, uma mistura de “ácido acético, vinagre, carbonato de amónio, sal, ácido tartárico e acetato de cobre”, (que mais não é do que uma receita para simular a pátina – a cor da antiguidade – nos artigos de bronze), não deixa dúvidas quanto à prática e local onde começava a trapaça. Até o tacho de 20 litros era uma testemunha muda…

Que fez Marco? Naturalmente que a velha amizade, que surgiu com o namoro de Elsa, foi destroçada pela indiferença de Maia para com a irmã, origem do suicídio (ou, num ocasional aperto marítimo, nada ter feito para se salvar). Agora, esperava-o nova traição. Foi à copa tirar o lacre das garrafas para o jantar de Clemente (sabia quanto este apreciava o gesto), após o que, antes de Maia sair, colocou uma cabeleira postiça (a prova B-5 caracteriza cabelos fracos, estaladiços, sem bolbo) para não ser reconhecido através dos cabelos louros (o caso do porteiro, que, parecendo-lhe uma pessoa conhecida, não o identificou), entrou no quarto e, calmamente, discutiram o assunto, bebendo uísque (Maia deixou impressões digitais, B-1, no seu copo; Marco, de luvas, B-2).

Levantou-se e, por de trás, com a mão direita, cortou da esquerda para a direita, atirando a navalha (B-3, sem impressões digitais) para perto do então já cadáver Maia. Colocou o Buda e o retrato da irmã por debaixo do grande tacho, com a mão enluvada, limpa. Uma coisa esqueceu: ao terminar a tarefa de tirar os lacres às garrafas, pisou um pedaço, bastante para deixar rasto no quarto do assassinado e que o “rafeiro" Lemos indicou como prova B-6 (mistura de colofónia, cera, sebo, pó de mínio = lacre). São provas bastantes para confrontar Marco com o Tribunal criminal.

No caso de Clemente, a técnica acima apontada dá lugar à dedução. Dado que a morte se deu entre as 2 e 3 da noite, e os árabes são unânimes em afirmar que só por ali passaram Maia, Clemente e João Santo, este em horas diferentes daqueles, a morte (excluído o suicídio) veio mesmo através da bala que entrou pela janela. Ora, quem possui uma arma suspeita, que utilizou em África (para matar homens) e no Alentejo (para matar milhafres) – é mesmo o “Santo Lobo”. Trata-se de uma Ruger Mini 14/5-R, uma semi-automática, calibre 223 Remington (pouco mais de 5,6 mm), com 18 polegadas e meia de cano, com seis estrias de giro à direita e um passo de giro de sete polegadas, que imprime à bala uma velocidade de rotação tão elevada que o seu choque hidrodinâmico nos tecidos atingidos é altamente destruidor. Bala esta de aço (A-2) que se adapta à situação.

João Santo vai colocar, a pedido de Maia, duas cabeceiras na cama e um candeeiro, no quarto nº 1. Fica a saber que Clemente está no hotel, e não aparece à hora do jantar. Não sabe que Clemente lhe perdoou o roubo do dinheiro, que está disposto a dar-lhe mais, inclusivamente dar-lhe quota no hotel. O “Lobo” é um homem frio; só encontra uma solução, a que sempre usou – matar! Porque tem as chaves mestras do Hotel, que não devolveu a Maia, convencido de que este já saiu para ir ter com o irmão, nem a Navarro que foi jantar a casa (só as deixa no escritório, depois de tudo consumado), sobe ao armazém e aguarda, pacientemente. Vê quando Clemente chega ao quarto, quando se deita e se põe a ler, recostado na almofada. Abre a janela do armazém, e, de dentro deste, num momento em que o tiro não pode ser ouvido (tendo em vista o ruído da discoteca), dispara e atinge o crânio do alentejano. O pequeno calibre e a velocidade da bala de aço não estilhaçam o vidro. Deixam, porém, um resíduo no parapeito da janela, do lado esquerdo interior, comprovativo de que o tiro foi oblíquo e disparado da direita.

Tudo bem! Mas, porque não conseguimos nós, com o cabo da vassoura apontado ao orifício, divisar a cabeça do morto? Simples. João Santo, um homem musculado, quando foi levar o pequeno-almoço, pegou na cama com o morto, sem lhe mexer (Clemente era franzino, leve) e colocou-a do lado contrário! Isto é, a cama fora colocada por Maia com a cabeça encostada à parede da casa de banho. João Santo encostou-a com a cabeça no lado oposto. Tirou a mesa-de-cabeceira e o candeeiro, colocando-os na mesma posição, mas do lado contrário. E, para confundir mais e não ser apanhado pelo detector dos árabes, como não foi, fez sair a bala do quarto pelo mesmo buraco por onde entrara. Tudo fácil.

Mas onde escondeu a arma, que não foi encontrada pelas buscas que fizemos? Também simples – juntou-a aos tacos de golfe, no respectivo saco, e saiu, presumidamente para jogar, mas, em verdade, para esconder a arma. Lembremo-nos que uma Ruger Mini 14/5-R tem apenas 947 mm de comprimento, o que a confunde com um taco.

E foram dois em um: dois mortos num hotel. Não poderia haver ementa pior.

O autor pede perdão por, através de Marco, matar Maia. É que, sendo ele a colocar a cama no lado oposto do quarto, quando soubesse que fora encontrada do lado contrário, não deixaria de o fazer notar. Estragaria o engenho de João Santo, o “Santo Lobo” (a menos que ele se lembrasse da hipótese e lhe desse sumiço), e do autor, que, laboriosamente, se viu em palpos de aranha, para não falhar no enredo!

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 18 de Julho de 2004 }

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004