CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 4

 

 

Solução de:

 

O PONTO DESAPARECIDO

Autor: Nove

 

As duas professoras que averiguaram este caso concluíram, pelas respostas das alunas interrogadas, nada haver contra Helena Vaz e Susana Martins, ao contrário de Leonor Hilbert, que deu claros sinais de saber mais do que devia:

1) Leonor, depois de declarar que esteve nos lavabos, acrescentou que não tinha ido a mais lado algum e que não a podiam ter visto noutro sítio. Ora, a pergunta feita não dava a entender que ela pudesse ter sido vista num local diferente dos que porventura indicasse. Mostrou assim estar preocupada com algo de comprometedor que, a destempo, se apressou a negar.

2) Disse, a propósito da ajuda que as colegas lhe pediram na véspera da prova, que notou logo que elas não estavam a ver o que ia sair em concreto. Se notou logo isso, antes de o ponto se realizar, é porque, nessa altura, ela já conhecia o enunciado.

3) Deixou-se trair por alguma vaidade ao afirmar, como remate das suas considerações sobre o que saiu no teste, que em qualquer caso faria sempre o ponto todo. Este “em qualquer caso faria sempre” significa que ela achava que responderia a tudo, mesmo que não tivesse sabido antecipadamente o que iria sair. Um deslize que confirmou o anterior.

4) Achou conveniente pôr-se à disposição para ser revistada se o que estivesse em causa fosse alguma chave desaparecida. Ora não era essa a questão. O que se pedia era a justificação da posse de uma chave por tempo demasiado. Leonor, caindo numa armadilha de associação de ideias, mostrou saber que, por detrás daquela pergunta, havia uma chave que saíra do seu lugar.

Estes quatro indícios levaram as duas professoras a inclinar-se para a inesperada culpabilidade de Leonor Hilbert.

Faltava, todavia, decifrar os bilhetes dos namorados. Debruçando-se com atenção sobre esses estranhos textos, elas verificaram que em qualquer deles havia termos muito significativos, tais como “cacifo”, “chave”, “cinco” e “contínuas”. E notaram, em especial, que:

A) Havia palavras que só apareciam no primeiro e no segundo;

B) Havia palavras que só apareciam no segundo e no terceiro;

C) Havia palavras que se repetiam nos três.

Em face disto depreenderam que os bilhetes poderiam ter o seguinte formato:

  A + C               A + B + C                     B + C

em que “A” representava o conjunto das palavras comuns só ao primeiro e ao segundo, “B representava o conjunto das palavras comuns apenas ao segundo e ao terceiro e “C representava o conjunto das palavras comuns aos três.

Para descobrir estes conjuntos, que se encontravam misturados, seguiram dois caminhos.

Num deles começaram por procurar “C”. Para isso sublinharam as palavras comuns ao primeiro e ao terceiro bilhete. Obtiveram de imediato “A”, “B” e “C”, uma vez que as palavras sublinhadas no primeiro e no terceiro correspondiam a “C”, as não sublinhadas no primeiro correspondiam a “A” e as não sublinhadas no terceiro correspondiam a “B”. Depois confirmaram que o segundo bilhete tinha todas as palavras de “A”, “B” e “C” e apenas essas. Se assim não fosse, a teoria da constituição dos bilhetes pelos três conjuntos, e só por eles, não se confirmaria e haveria que revê-la ou procurar outra.

Num segundo caminho, talvez o menos sujeito a enganos, procuraram determinar os três conjuntos de palavras de acordo com as seguintes subtracções:

(A + B + C) – ( A + C)  = B

depois       (B + C)  – B = C

e por fim    (A + C)  – C = A.

Para efectuar estas operações riscaram no segundo bilhete todas as palavras que se viam no primeiro. Obtiveram “B”. Depois riscaram no terceiro todas as palavras que ficaram por riscar no segundo. Obtiveram “C”. Finalmente riscaram no primeiro bilhete todas as palavras que ficaram por riscar no terceiro. Obtiveram “A”. Um pouco trabalhoso, é verdade, mas de passos muito simples e seguros.

O resultado, visto e revisto para evitar qualquer falha, foi o seguinte:

A = Beijos. porta. do meu coração. alíneas. gaveta aula ponto. seis. Gorjetas duas C.M.

B = amor. Visto fechado. solta? mestra. Só. Passos? tarde. Prateleira atrás. dia quatro? Parte. mais S.

C = cacifo e chave. cinco. Esta situada na sala. das contínuas,

Os conjuntos “A e “B”, por mais voltas que se lhes desse, não mostravam ter sentido, em completa oposição com “C”, que evidenciava uma informação bem clara e pertinente:

Cacifo e chave cinco. Esta situada na sala das contínuas.

Assim as duas docentes concluíram que, de facto, viera do exterior a informação do número do cacifo que guardava os pontos, bem como a do sítio onde se encontrava a respectiva chave. A larápia, conforme já haviam suposto, teria aproveitado um intervalo para sacar a chave da sala das contínuas e um período de funcionamento das aulas para assaltar o cacifo.

Tudo isto encaixava com os indícios revelados pela Leonor Hilbert. Ela era a presumível ratoneira. O essencial do enigma estava desvendado. Às duas professoras bastou então confirmar, junto da pequena do segundo ano, que a destinatária dos bilhetes era aquela brilhante aluna de Matemática.

Nota. – Leonor e o namorado usaram cada um a sua máscara de palavras para disfarçar a informação a transmitir, com a particularidade de Leonor desconhecer a máscara do namorado e este desconhecer a máscara de Leonor. Desta forma eles puderam corresponder-se secretamente sem combinarem chaves de descodificação.

O namorado mandou à Leonor a mensagem “C” misturada com a sua máscara “A”. A Leonor recebeu este bilhete “A+C” mas não o pôde decifrar porque desconhecia as palavras que constituíam a máscara “A”. Juntou-lhe então a sua máscara de palavras “B” e enviou para o namorado o bilhete “A+B+C”. O namorado retirou deste último as palavras da sua máscara “A” e enviou para a Leonor “B+C”. Esta retirou a sua máscara de palavras “B” e ficou a conhecer “C”, que era o que interessava. Engenhoso, não é verdade?

Os dois namorados esqueceram-se, em todo o caso, que uma maninha curiosa podia copiar tudo e que os bilhetes vistos em conjunto eram decifráveis, como o mostraram as duas perspicazes professoras.

Este processo de comunicação foi por eles adaptado do célebre esquema de Alice e Bob, dois namorados que só podiam comunicar entre si através de um correio coscuvilheiro. Assim, querendo Alice mandar uma carta de amor a Bob, meteu-a dentro de uma caixa fechada com um cadeado de que apenas ela tinha a chave. O correio não pôde ver nada. Bob, que também não pôde ler a carta, juntou à caixa um cadeado seu, de que só ele tinha a chave, e mandou-a fechada com os dois cadeados para Alice. Esta retirou o cadeado que lhe pertencia e devolveu a improvisada mala de correio a Bob, agora só com o cadeado do rapaz. Ele então abriu a caixa e deliciou-se com a missiva da namorada.

Sobre a criptografia em geral e o esquema de Alice e Bob há muita literatura. Para leitura imediata sugiro o artigo do prof. Nuno Crato publicado na Revista do Expresso de 22 de Setembro de 2001 e que pode ser visto no sítio http://pascal.iseg.utl.pt/~ncrato (Pessoal… ® Temas matemáticos ® Criptografia, 2: Chaves públicas).

A quem julgue inverosímil a aventura em que a Leonor se envolveu para obter uma coisa de que não precisava, lembro que não é raro mentes brilhantes meterem-se em complicações que parecem incompreensíveis. Veja-se o caso de alguns “hackers” excepcionalmente dotados que se introduzem em sistemas informáticos de alta segurança, arriscando-se a apanhar anos de prisão, apenas pelo prazer do desafio e não para retirar informação ou proveitos monetários. Foi, de certo modo, o que aconteceu com a Leonor. Ela era uma rebelde!

Por ser tão boa aluna e por ter atingido o seu objectivo sem que alguém a visse, muito orgulhosa do seu intrépido feito, Leonor nunca pensou que a viriam a questionar. Esse erro, que teve como consequência uma série de deslizes durante o interrogatório, a que ainda por cima se juntou a cópia dos bilhetes pela menina bisbilhoteira, deitou tudo a perder.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 22 de Fevereiro de 2004 }

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004