CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 5

 

 

Solução de:

 

O MISTÉRIO DA VIVENDA COR-DE-ROSA

Autor: Rip Kirby

 

Adélia Mascarenhas morreu asfixiada por óxido de carbono. As faces rosadas e os lábios de um vermelho-vivo são disso indício. Acidente? Suicídio? Crime? É o que iremos analisar de seguida.

É ponto assente que este tipo de morte geralmente acontece por acidente ou suicídio, já que ninguém se deixaria matar daquela maneira a não ser que estivesse indefeso. Portanto, em princípio, a hipótese de crime fica em suspenso.

Acidente salta imediatamente aos olhos que não foi. A mangueira estabelecendo contacto entre o tubo de escape e o interior do carro não pode estar ali acidentalmente. Assim, a possibilidade de suicídio ganha vulto.

No corpo de Adélia não existem sinais de violência. É verdade que a senhora se encontrava indefesa, pois certamente que o forte sonífero cujos vestígios foram encontrados no corpo depressa a adormeceu.

Mas será que a droga foi tomada voluntariamente ou lhe foi administrada por alguém? Este é um facto difícil, ou aparentemente difícil, de provar. Será? Parece que não, ou, pelo menos, no texto encontraremos dados que levantarão muitas dúvidas.

Vejamos. No carro foi encontrado um exemplar do jornal PÚBLICO no qual, entre outras notícias, vinha noticiado a inauguração do Estádio Jorge Sampaio, em Vila Nova de Gaia. Esta notícia fazia parte do suplemento Local, edição do Porto. Na edição de Lisboa não foi abordada. De referir que a edição do Porto apenas é distribuída no Norte de Portugal. Foi também encontrado no porta-luvas do carro em questão um recibo do Totoloto registado na véspera numa agência do Porto às 17h05m35s. Estes dois pormenores revelam-nos que no sábado, às 17 horas, aquele carro se encontrava no Porto e que no domingo pela manhã ainda lá se encontrava ou nos seus arredores.

O sargento Silveira encontrou também um talão da portagem de Sacavém datado daquele dia às 8h45 para veículos classe A e cuja taxa inscrita era €16,65. Esta é a taxa cobrada a veículos daquela classe que percorrem a auto-estrada A1 em toda a sua extensão. Foi ainda encontrado um talão de abastecimento de gasolina na área de serviço de Pombal com data daquele dia às 7h40.

Estes dois talões demonstram que aquele carro havia percorrido a auto-estrada Porto-Lisboa em toda a sua extensão naquela manhã. Aqui coloca-se uma pergunta: teria Adélia Mascarenhas ido ao Porto no carro com que habitualmente andava o marido?

É evidente que não foi. No sábado às 18 horas, quando o filho lhe telefonou, ela encontrava-se em casa, pelo que não podia ter registado o Totoloto no Porto pouco depois das 17 horas. Como fomos informados pelo marido, ela não tinha telemóvel. Por outro lado, o modo como ela se apresentava vestida não era o de quem acaba de chegar de uma viagem.

Analisemos agora a questão a partir de outros pressupostos. Sobre a mesa da cozinha foram encontradas migalhas de bolo de chocolate e de cavacas. No relatório da autópsia consta que no estômago de Adélia foram encontrados restos de bolo de chocolate, mas nada se refere no que diz respeito às cavacas. Portanto, Adélia comeu o bolo de chocolate ou parte dele, mas não tocou nas cavacas. Se destas existem migalhas sobre a mesa é sinal que alguém as esteve comendo e se Adélia não foi é porque esse alguém lhe esteve a fazer companhia. Quem teria sido? Nem mais nem menos de que Orlando Mascarenhas. No copo encontrado com restos de leite sobre a mesa, as únicas impressões digitais que foram detectadas foram as dele, mas apenas no rebordo – o que indica que as restantes foram limpas, já que as encontradas revelam que o copo foi seguro na ponta dos dedos indicador e polegar para ser limpo. Este facto demonstra que Orlando Mascarenhas estava naquela manhã em Lisboa e não a caminho de Braga, como quer fazer crer.

Mas como foi isso possível? Como estamos recordados, dentro do carro onde aconteceu a morte de Adélia, para além do que já foi referido, foi encontrado um aviso para o pagamento de uma multa passada pela PSP de Santarém na noite de sexta-feira, por estacionamento indevido, e também um bilhete obliterado de Lisboa para o Porto para o Alfa das 7h55 de sábado. Por outro lado, Orlando não tinha com ele o bilhete que presumivelmente teria usado mas, em compensação, tinha um para o Intercidades das 17h55 de Santarém para Lisboa.

Com estes elementos podemos estabelecer o modo como Orlando teria agido. Na sexta-feira ele levou o carro para Santarém, tendo regressado a Lisboa no Intercidades atrás referido. No sábado compra um bilhete para o Porto para o Alfa das 7h55 em que segue viagem; contudo, sai em Santarém com o bilhete já obliterado. Ao chegar junto do carro verifica que havia sido multado. Mete o aviso no porta-luvas e, possivelmente distraído, o bilhete também, continuando a viagem até ao Porto. Porém, calcula mal o tempo da viagem e regista-se na pensão cerca de 15 minutos antes da hora prevista para a chegada do comboio em que era suposto ele viajar. No domingo de manhã sai cedo dizendo que vai a Braga, mas na realidade volta para Lisboa parando na área de serviço de Pombal para reabastecer o carro e onde certamente comprou o bolo de chocolate, as cavacas e o pacote de leite com chocolate. Antes de seguir viagem mistura o sonífero no leite, agita para dissolver e coloca o pacote sobre o banco, provocando as manchas que se esqueceu de limpar ou limpou mal.

Chega a casa cerca das nove horas ou um pouco mais, encontra a esposa ainda na cama e sob qualquer pretexto convence-a a acompanhá-lo à cozinha para tomarem o pequeno-almoço. Ele come algumas das cavacas e bebe um copo de leite, a esposa come o bolo de chocolate e bebe o leite com chocolate e pouco depois cai em sonolência e adormece. Orlando pega nela, leva-a para o carro e senta-a frente ao volante. Antes, porém, põe o motor a funcionar. Com a mangueira estabelece a ligação entre o escape e o interior do carro, fecha as portas e com a camurça molhada passa pela carroçaria para eliminar possíveis impressões.

Volta à cozinha, limpa o copo que usou, mas esqueceu-se dos dois dedos – com cujas pontas o segurou – e da embalagem do leite com chocolate. Sai e vai tomar o Alfa das 10h55 para o Porto onde chega presumivelmente pelas 14h15. No decorrer da viagem telefona para lembrar a mulher da necessidade de, no dia seguinte, levar o Mercedes à revisão. Para quem saiu às 5h30 para ir a Braga e voltar às 14h15 sem se ter encontrado com o amigo, é muito tempo.

Talvez não possamos acusar frontalmente Orlando Mascarenhas. Talvez os investigadores tenham alguma dificuldade para o incriminarem sem uma confissão, mas as contradições entre o que ele afirma e o que as provas encontradas nos demonstram são suficientes para o comprometerem e o levarem a julgamento. Um inocente não tinha necessidade de tantas mentiras.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 14 de Março de 2004 }

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004