CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 6

 

 

Solução de:

 

FORAM AMIGOS…

Autor: Daniel Falcão

 

Alguns dos elementos recolhidos no decurso da investigação chamam-nos a atenção para a possibilidade de estarmos perante um crime perpetrado pelo Carlos: os sapatos encontrados no seu quarto com resíduos de terra igual à existente sob a janela exterior do escritório; ter reagido tardiamente ao som do tiro que fora por ambos escutado; e, finalmente, ter chamado a atenção para um possível vulto a entrar em casa, quando não existia qualquer luz exterior, nem sequer no “hall” de entrada.

Eis, então, a primeira hipótese de solução: Carlos chegou tardiamente a casa e, por qualquer motivo, decidiu assassinar Alberto. Entrou no escritório, talvez pela porta principal, viu-o a dormir com a cabeça deitada sobre a secretária, assassinou-o friamente e saiu pela janela, com receio de se cruzar com Bernardo. Protegera-se ao segurar na arma, não deixando quaisquer impressões digitais. Ao saltar da janela, a arma ter-lhe-ia caído, com a precipitação da fuga, no canteiro com flores, onde deixara marcas da sua passagem. Entrou pela porta exterior que dava acesso ao quarto do Alberto, que ficava mesmo ao lado da janela por onde passara, dirigiu-se ao quarto, tirou os sapatos e calçou uns chinelos. Apareceu, então, no escritório onde já se encontrava Bernardo. Passara pouco mais de um minuto (o tempo demorado por Bernardo até chegar ao escritório, acrescido do período de hesitação) desde que se ouvira o tiro. Tempo suficiente para estas movimentações. No dia seguinte, tenta desviar a atenção das investigações para um personagem inventado, quando refere ter visto um vulto a entrar em casa.

Todavia, esta hipótese de solução não é consonante com outros elementos recolhidos no decurso da investigação.

Observemos cuidadosamente como foi encontrado Alberto. A bala fatal atravessara a cabeça, entrando pelo lado esquerdo (pois a bala fora alojar-se no quadro que estava na parede à direita do corpo) onde provocou uma ferida com queimaduras e contornos lacerados e irregulares, denotando que o disparo fora desferido com a arma praticamente encostada à cabeça. Ou seja, quando o tiro foi desferido, Alberto encontrava-se sentado direito ou mesmo em pé, pois, caso estivesse deitado sobre a secretária, a bala ficaria, possivelmente, incrustada na madeira da secretária. Neste caso, nunca poderia estar adormecido, pois ninguém adormece sentado num banco, sem cair para o lado. Quando o tiro foi desferido, Alberto teria que estar acordado. Nestas condições, não seria fácil a Carlos, nem a qualquer outra personagem, assassiná-lo à queima-roupa, sem Alberto reagir, levantando-se por exemplo. Refira-se que, da secretária, Carlos controla facilmente qualquer entrada no escritório, independentemente de ser por qualquer das portas ou pela janela.

Passamos, então, à segunda hipótese de solução: o Alberto suicidou-se. Por qualquer motivo, naquela noite o Alberto foi para o escritório com o intuito de se suicidar ou tomou essa decisão após receber um qualquer telefonema crítico. A favor desta hipótese temos o estado em que foi encontrado o corpo: após desferir o tiro fatal (com a bala a atravessar a cabeça no sentido ascendente), sentado no banco e (quem sabe?) ligeiramente inclinado para a frente com o braço direito sobre a secretária, a cabeça tombou para cima dela. O tiro foi desferido pelo lado esquerdo, ou seja, Alberto era canhoto. Podendo confirmar este facto, temos o telefone e a caneta encontrados do lado esquerdo da secretária.

Mais uma vez, também esta hipótese de solução não é consonante com outros elementos recolhidos no decurso da investigação, nomeadamente com o facto de a arma ter sido encontrado no exterior do escritório, sem quaisquer impressões digitais (Alberto não se preocuparia em não deixar impressões digitais).

Terceira hipótese de solução: será Bernardo o assassino? Não, porque, como já vimos, não seria possível a qualquer personagem entrar no escritório e assassinar Alberto.

Resta-nos uma última hipótese de solução: Alberto suicidou-se efectivamente e Bernardo, após descobrir o corpo, procurou incriminar Carlos. Contudo, esta tentativa para incriminar Carlos, não poderia nunca ter ocorrido quando Carlos já estava em casa e depois de se escutar o tiro, por falta de tempo. É verdade que Carlos demorou algum tempo a aparecer, pouco mais de um minuto, o que daria tempo para retirar a arma da mão de Alberto, para a limpar de quaisquer impressões digitais e para a colocar no exterior, no canteiro de flores. Mas e as marcas dos sapatos? E a colocação dos sapatos no quarto?

Na realidade, o Alberto suicidara-se antes de o Carlos chegar a casa. Vejamos, então, como tudo aconteceu. O Bernardo estava no quarto quando escutou o tiro, que viria a determinar ter provido do escritório. Quando lá chegou, encontrou Alberto morto. Muito possivelmente, sobre a secretária por baixo da caneta teria encontrado uma nota de despedida e a explicação da razão que estava na origem do suicídio. Daí que, numa secretária tão vazia, tenha sido encontrada, isolada, uma simples caneta. Foi então que resolveu simular o homicídio e incriminar Carlos. Foi ao quarto deste, calçou um par de sapatos, regressou ao escritório, levantou a caneta, agarrou na nota de despedida, voltou a pousar a caneta, retirou a arma da mão do Alberto ou recolheu-a do chão, limpou as impressões digitais, apagou a luz do escritório, saltou para o exterior caindo, propositadamente, sobre o canteiro de flores onde deixaria as marcas que viriam a ser encontradas e garantindo que alguma terra se prendia aos sapatos (não nos podemos esquecer que no final da tarde os canteiros foram regados, estando a terra suficientemente amolecida). Possivelmente, descalçou os sapatos evitando que a terra se soltasse enquanto caminhava. Reentrou pela entrada principal, dirigindo-se ao quarto de Carlos para lá colocar o par de sapatos.

Mais tarde, passado algum tempo após a chegada de Carlos, continuou com o seu plano. Aproveitando a arma que tinha no seu quarto (pois também possuía a sua própria arma), disparou um tiro da janela do quarto para o exterior, o tiro que fora escutado por Carlos, e continuou com a encenação.

As declarações do Carlos são de total confiança, incluindo o vulto que ele refere ter visto a entrar em casa. Carlos chegou a casa no momento em que Bernardo se preparava para concluir a encenação e entrava pela porta principal. Mas, se não havia iluminação exterior, nem no “hall” de entrada, como era possível numa zona tipicamente florestal, com altas árvores, ver o que quer que fosse? Embora não existisse luz artificial, havia luz natural, pois era noite de Lua Cheia, a qual iluminava a clareira onde se encontrava a moradia.

A Festa da Coca ocorre no Dia de Corpo de Deus, feriado móvel, o qual ocorre sempre, qualquer que seja o ano, em dia de lua em Quarto Minguante. Logo, uma semana antes, altura a que se reporta o início da investigação, estaríamos em noite de Lua Cheia, que iluminava as noites minhotas, enquanto o magnifico Sol iluminava os dias.

Deve ser afastada a hipótese de Carlos ter sujado os sapatos ao regar os canteiros, na eventualidade de ter sido ele a executar essa tarefa (não havendo nada que o comprove), pois nesse caso não colocaria o par de sapatos sujo ao lado dos outros pares. Também deve ser considerado suspeito o facto de Bernardo se ter dirigido ao escritório, estando as luzes todas apagadas, quando a opção mais natural seria bater primeiro nas portas dos quartos. Se Bernardo tivesse assassinado Alberto, parece-nos que esperaria pela manhã para o corpo ser descoberto e, eventualmente, procuraria deixar indícios que apontassem para suicídio. Porém, aconteceu precisamente o contrário.

Por fim: a revista mais cuidadosa feita à moradia encontrara, no quarto de Bernardo, a arma que serviu para o segundo disparo; foi determinada, com maior rigor a hora da morte; foram encontrados resíduos de pólvora na mão esquerda da vítima e, eventualmente, numa das mãos do Bernardo; e descobertas as razões que motivaram o suicídio e a tentativa de incriminação.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 2 de Maio de 2004 }

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004