CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 7

 

 

Solução de:

 

CRIME NO ESCRITÓRIO

Autor: Paulo

 

1. Antes de mais nada é necessário localizar o crime no tempo. Comecemos por escalonar cronologicamente algumas acções, para desse modo se poder verificar quem estava no escritório quando o crime foi cometido.

a) 8h15 – chega  Geraldo.

b) 8h30 – chega Alberto.

c) 8h58 – chega Roberto.

d) 9h00 – chega Matilde.

e) Um pouco antes das 10h00 – Roberto vai ao gabinete de Alberto.

f) Cerca das 10h00 Alberto sai do gabinete. A porta fecha-se e Alberto vai aos correios.

g) 10h30 – Roberto sai para o exterior.

h) 10h30-10h40 (aproximadamente), Matilde está na casa de banho.

i) 10h45 – regressa Geraldo. Vai ao gabinete de Alberto e encontra-o morto.

j) Poucos minutos depois das 10h45 regressa Roberto.

2. De seguida, é necessário concluir sobre a hora em que ocorreu o crime. Na verdade, há duas informações contraditórias.

I – A temperatura do corpo aponta para morte entre as dez e as onze horas.

II – A análise do conteúdo do estômago apontava para a morte uma hora após a ingestão dos alimentos.

É necessário descodificar esta segunda informação para se concluir qual será a hora para que ela aponta:

i) Admitindo que Alberto tivesse comido o mais tardar às oito horas e quinze minutos, a morte teria de ter ocorrido entre as nove e as nove e um quarto.

ii) Não é admissível uma refeição mais tardia, já no escritório, pois além de não serem apontados vestígios de ter havido ingestão de alimentos no local, os dentes da vítima estão perfeitamente limpos. Isso só seria possível se ele tivesse comido em casa e lavado os dentes de seguida.

Temos então duas informações contraditórias: o conteúdo do estômago, que aponta que a morte não poderia ocorrer depois das nove e um quarto, e a temperatura do corpo, que diz que ocorreu entre as dez e as onze horas.

É necessário optar e a opção só pode ser feita de forma a considerar que a morte ocorreu antes das nove e um quarto.

a) Não é um indício falsificável com facilidade. Não é fácil colocar no estômago de um cadáver alimentos que já tenham sido ingeridos uma hora antes.

b) A temperatura poderia ter sido aumentada artificialmente para dificultar as investigações. Existia um aquecedor junto do cadáver que se estivesse ligado poderia aumentar a temperatura ambiente e induzir em erro quem observou o cadáver. Bastaria desligá-lo cerca de uma hora, ou até menos, antes de o cadáver ser descoberto para que não se notasse que o gabinete esteve mais quente.

3. Determinada a hora da morte e analisando a sequência cronológica dos factos é fácil concluir que o assassino só pode ser o Geraldo. As razões são:

a) Até às nove horas esteve sozinho com Alberto. Nos minutos seguintes esteve acompanhado, mas as relações com os colegas não deixam admitir qualquer cumplicidade.

b) A cumplicidade com o vigilante também é de excluir, pois nada indica esse caminho.

c) O vigilante sozinho jamais poderia ter cometido o crime sem que Geraldo visse.

d) Pela janela não era possível entrar nenhum assassino pois esta estava fechada por dentro, além de que o acesso não era fácil, a partir do exterior, como constatou o inspector Fagundes.

e) Geraldo não poderia ter falado com o patrão às 10 horas, no seu gabinete, pois ele já estava morto.

Concluindo: Geraldo, entre as oito e um quarto e as nove horas, matou Alberto.

4. Como explicar o bater da porta quando Geraldo estava para sair, não havendo correntes de ar, tentando indicar que fora Alberto que cometera tal acto?

a) Geraldo é pescador.

b) Os pescadores usam fio de pesca, que é quase invisível, especialmente quando quem olha para ele sofre de acentuada miopia.

c) Geraldo terá passado um fio no puxador, ou pelo orifício da chave, sem que desse um nó que o prendesse, de forma que, puxando-o para si, pudesse fechar a porta e depois puxar o fio. Bastava que as duas pontas ficassem junto da secretária.

d) Quando simulou atar os atacadores, estava na verdade a puxar o fio, fechando a porta.

e) Só teve que puxar o fio completamente e arrumá-lo na pasta.

5. Façamos então uma descrição sumária de como tudo terá ocorrido. Tratou-se de um crime cuidadosamente planeado, e que teve em conta os horários de trabalho de toda a gente, o seu relacionamento, as suas características físicas e os seus hábitos.

a) Depois de Alberto chegar, e quando já estava sentado, Geraldo matou-o com um tiro. Se a arma usada tiver ejectado cápsula ele tê-la-á recolhido; se não ejectou, não teve esse problema para resolver. Como o vigilante não ouviu qualquer tiro, a arma deveria ter silenciador.

b) Deixou cair a arma da janela para cima das flores, partindo algumas. Ele sabia que Roberto costumava cortar algumas flores todos os dias, e por isso talvez ninguém estranhasse. Só que o revólver não as cortou, partiu-as, deixando lá as hastes presas por filamentos.

c) Fechou a janela. Deste modo, quando o corpo fosse descoberto, tudo indicaria para um crime cometido do interior.

d) Ligou o aquecedor eléctrico junto do cadáver, tentando assim falsear a hora da morte.

e) Colocou o fio de pesca de forma que pudesse fechar a porta e puxar o fio para si.

f) Não teve problemas em deixar a porta aberta, pois sabia que das secretárias dos colegas o cadáver não era visível, como o inspector Fagundes verificou.

g) Devido às relações entre os colegas e o patrão, não receou que nenhum dos colegas entrasse no gabinete. Claro que correu riscos, mas reduzidos.

h) Às dez horas simulou ter ido falar Alberto e desligou o aquecimento. Deverá ter sido neste momento que ele desligou o aquecedor, pois se o tivesse feito no regresso, poderia ter sido detectada a temperatura mais elevada dentro do gabinete. Assim houve tempo para ocorrer o abaixamento da temperatura.

i) Voltou ao seu lugar, e, simulando apertar o sapato, puxou o fio que fechava a porta, puxando de seguida o fio e guardando-o na pasta.

j) Desceu as escadas e saiu pela porta que dá para as traseiras. Foi debaixo da janela recolher a arma. Fez este movimento à vontade porque sabia que o local não era visível da cabina do vigilante.

k) Recolheu a arma num saco de plástico, bem fechado para não deixar vestígios, voltou a entrar no edifício e saiu pela porta da frente.

l) Durante o percurso desfez-se da arma e do fio. Não lhe terão faltado locais para isso, nem que fosse um caixote do lixo, talvez até o sítio mais seguro. Naquela época os lixos iam indiscriminadamente para lixeiras, sem sofrerem qualquer separação, pelo que a arma jamais seria encontrada, ou se o fosse ninguém a associaria a ele.

m) Regressou e fingiu ter descoberto o cadáver naquele momento.

n) O mais provável é que tenha usado luvas para disparar, para desligar o aquecedor e quando recolheu a arma. As luvas terão sido deitadas fora juntamente com a arma, mas não necessariamente no mesmo local.

6. O motivo de tudo isto: ciúme e vingança.

a) Ciúme, por ver a sua antiga namorada com outros.

b) Vingança de Alberto, que lhe tirou a namorada. Vingança de Matilde, que o abandonou; vingança de Roberto, que andava com a mulher que ele queria para si, mas que também odiava.

c) O plano era "quase" perfeito. Alberto era morto. Ao simular a hora da morte para o momento em que Matilde e Roberto ficavam sozinhos, atirava com a culpa para cima deles, sabendo que qualquer um poderia odiar o patrão. Serviu-se ainda do conhecimento que tinha de que o Roberto costumava sair, como sendo a ocasião em que se poderia livrar da arma.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 9 de Maio de 2004 }

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004