CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 8

 

 

Solução de:

 

UM CASO CURIOSO

Autor: Inspector Fidalgo

 

Como é fácil verificar, o número de suspeitos… é apenas de um! Portanto, cabe aqui verificar se terá havido acidente, ou, pelo contrário, se estamos perante um crime.

A acção passa-se numa aldeia piscatória, com areal, algures na nossa costa.

Em primeiro lugar, não é indicada explicitamente a data da ocorrência, mas é fácil determinar que tudo se passa na noite de 28 de Fevereiro, madrugada de 1 de Março, de um ano comum.

Isto porque o senhor Silva faz referência à sua suposição de se tratar de um embriagado que ali tivesse caído, uma vez que por lá todos recebem o salário no dia 28 de cada mês e ele mesmo saiu do estabelecimento naquela noite e àquela hora, porque tinha de fazer os acertos da sua contabilidade no último dia de cada mês. A conjugação destes dois factores determina que apenas esta data abarque cumulativamente ambas as premissas.

O facto de o Inspector Fidalgo adorar fazer passeios na praia e estar de férias não tem qualquer significado. Em Fevereiro também há areal para passeio e podem gozar-se férias nessa época!

Esta constatação levanta imediatamente a primeira questão: para Fevereiro, ainda para mais à noite, o Burrica não estava convenientemente vestido!

Fica justificada a ausência de qualquer documentação ou outro objecto, nomeadamente chaves de casa e principalmente – no dizer do senhor Silva – o maço de tabaco, isqueiro ou fósforos, que um viciado no tabaco jamais dispensaria. O casaco (ou sobretudo) – cuja composição desconhecemos – foi-lhe subtraído.

O uso de ténis e calças de ganga é, hoje em dia, perfeitamente normal, mesmo no Inverno. A blusa de manga curta apenas poderia surpreender se se soubesse que nada mais vestia por cima, o que não é o caso, como já vimos.

E se até este momento ainda poderíamos considerar que se tratava de uma queda acidental, seguida de roubo do casaco, com carteira, documentos, etc., praticado por desconhecido, tudo se vai esclarecendo à medida que o senhor Silva vai abrindo o rol das suas declarações.

Primeiro quando diz que o Burrica fumava muito. O Inspector Fidalgo notou – não sem surpresa, atendendo à sua actividade na pesca –, que as unhas estavam limpas e cuidadas. Hoje em dia, muitos jovens trabalhadores não dispensam o uso de luvas, que na pesca, quer na construção civil, quer em muitas outras actividades particularmente sujas e atreitas a criar calosidades. Portanto, a surpresa não seria tanto essa, mas sim a de o Burrica ser apresentado como um homem que fumava muito e não tinha as marcas inerentes a esse facto, unhas e dedos com a coloração habitual produzida pelo fumo, porque ninguém calça luvas para acender e fumar um cigarro!

Segundo, quando apresenta a prova do que afirma, um papel avulso onde, presumivelmente, estariam as compras efectuadas pelo Burrica e onde se encontravam registos quase diários de compra de maços de tabaco. É que se toda a gente conhecia o moço como “Burrica”, desde sempre, nunca ele seria identificado no topo da listagem como “Afonso”! Esta Afonso seria outra pessoa, fumador, e o Inspector Fidalgo percorreu todas as folhas para ver se não estaria lá a do “Burrica” e, possivelmente, para verificar se todas estavam escritas da mesma forma para determinar se não haveria por ali uma falsificação de última hora…

Fosse como fosse, aquela folha não podia ser a do nosso “Burrica”.

A esta hora o senhor Silva deve estar a pensar na sua vida atrás das grades e o Inspector Fidalgo a fazer contas aos dias que faltam para mais uma grande caminhada pelos areais extensos da simpática aldeia, onde as noites de 28 continuam a ser de festa e algum exagero…

Sobre os motivos que levaram o senhor Silva a praticar o crime e o modo como o fez, isso não é para aqui chamado.

O autor tem o poder de conduzir o seu caso da forma que entender e de só revelar as motivações e o processo de execução se assim quiser, muito embora seja aconselhável, na maioria dos casos, dar a entender o motivo do crime, para que este não apareça aos olhos do leitor como um crime sem motivação, um crime gratuito, cometido de forma aleatória.

O Inspector Fidalgo não pretendeu com esta actuação vulgarizar o crime. É evidente que o senhor Silva teve um motivo e praticou um crime seguindo uma certa lógica – a sua.

Agora é a vez de a imaginação dos nossos “detectives” ser posta a trabalhar…

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 30 de Maio de 2004 }

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004