CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 9

 

 

Solução de:

 

O ENIGMA DA MORTE DO GERENTE

Autor: Severina 

 

Ninguém assassinou o gerente: foi suicídio.

Vicente Lopes era gastador. Sobrevindo a doença e morte da mulher, retirou valores da empresa. Que não foi capaz de repor.

A velha pistola sem dono, já lhe sugerira o suicídio; e até o modo de pôr termo à vida sem dar a entender que morrera às próprias mãos. Agora, com a auditoria e a próxima falência da empresa – porque o desfalque ficaria a descoberto – o gerente deu preferência ao suicídio em vez da humilhação da cadeia. Nascido noutro nível, estava farto do emprego que fora obrigado a aceitar.

Era de Ana Cristina a marca do sapato (de salto) com laivos da lama deixada no tapete pelos saltos do Vicente. Mas não o matou. Assim que Manuel Lúcio fugiu do gabinete, intrigada, olhou pela porta aberta e viu o gerente morto. Julgando que Lúcio o matara reagindo ao que lhe fora dito, não quis ser ela a dar o alarme para não denunciar o seu padrinho. Pôs um pé dentro da porta, para a conseguir puxar e fechá-la no trinco; trinco esse que, por fora, não abria sem chave. E aguardou.

Lúcio não matou o gerente. Este estava postado a meio da divisão, morto com um tiro na nuca, não podia ser atingido à queima-roupa a partir da porta, de onde Lúcio não passou.

Quanto a Graciano, que nem era empregado da casa, está fora de questão: quando Vicente Lopes morreu já o estafeta saíra havia muito da oficina.

Há ainda o dono do restaurante, que pode ser acusado de crime e roubo, visto ter levado a maleta do gerente: decerto cedida por quem não tencionada voltar a usá-la – ou com a intenção de o inculpar, tal como fez ao apagar-lhe as impressões digitais no copo. Mas a ausência de pegadas suas por detrás de Vicente, uma vez que este foi atingido à queima-roupa na nuca, assim como a verificação da hora do depósito na agência do banco, feito de imediato, iliba-o.

Vicente Lopes preparou o suicídio. Cumprido o pagamento ao proprietário do restaurante, com o resto de todo o seu depósito no banco – levantado antes de seguir para o emprego – esperava até surgir uma oportunidade, para a execução que ensaiara repetidas vezes. Com a facilidade que lhe davam os seus exercícios acrobáticos. O momento psicológico chegou com o barulho da betoneira a trabalhar. Bastava aproveitar.

Com a velha “Browning” oleada, armada e limpa de impressões digitais, pronta a disparar, serviu-se do seu lenço de seda natural, que usava ao pescoço, para proteger as mãos. Deixando o lenço bem solto, através da seda, com a mão esquerda – era canhoto, como se viu ao usar o relógio no pulso direito – tomou a arma pela coronha e compôs o lenço com a mão direita, para deixar o cano a nu.

Com extrema concentração, elevou as duas mãos atrás da cabeça, segurou a pistola com as palmas protegidas. Pôs a boca do cano assente na nuca e prendeu-a no ponto certo com a mão direita a premir a parte de cima da coronha. Sempre com as mãos tapadas, tal como protegeu o dedo médio da mão esquerda ao conseguir tocar – sem o deixar preso – na parte da frente do gatilho, de modo a poder disparar. Devido ao disparo, um pouco mais direccionado para o lado direito, por Vicente ser esquerdino e com naturalidade pressionar mais desse lado, a bala foi cravar-se na ombreira da janela, à direita.

Dado o tiro – tal como ensaiou – as mãos afrouxaram, soltas; os braços ficaram lassos e à vontade. A arma, devido ao peso, arrastou o lenço e resvalou para o lado onde foi tocada pelo dedo. O corpo abateu-se…

Deveria ter sido o Silveira a entrar no gabinete quando Vicente acabou de disparar, para que a suspeita da sua morte caísse sobre si. Mas não sendo esse, outro qualquer… Por isso quis sempre a porta entreaberta para entrarem à vontade. Tinha limpo a arma cuidadosamente e retirado as impressões digitais do copo do outro, indiferente a quem pudesse ser acusado pela sua morte.

Assim: a razão da morte de Vicente foi o desfalque que praticou. Suicidou-se como ficou explicado. Difícil, mas não impossível. A morte foi causada por si, por convicção. Mas com intenção de incriminar alguém…

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 20 de Junho de 2004 }

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004