Publicação: “Público”

Data: 2 de Março de 2008

 

 

Campeonato Nacional 2007-08

Taça de Portugal 2007-08

 

 

 

 

CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2007-08

 

SOLUÇÃO DA PROVA Nº 3

 

MORTE NA PONTE

Autor: Búfalos Associados

 

01 – Na história original, é o louco quem mata a jovem. E, no problema, o guarda-florestal poderia estar a mentir, encobrindo o primo, quando disse que o levou para sua casa, pouco depois das 9 da manhã. Mas o facto é que, tanto o amigo, como o marido, como o sedutor, declararam ter ido à ponte depois das 9 horas e não ter visto nada nem ninguém. Não podem os três estar a mentir, o que iliba completamente o louco e até o próprio guarda, dando credibilidade às suas afirmações. Torna-se claro que um dos três declarantes deverá ser o criminoso e, se foi à ponte, foi para matar, já que tanto o barqueiro, como o mordomo ou as criadas não parecem ter qualquer motivo para o crime, e suicídio está fora de causa.

02 – O marido, que poderia ter sido o assassino movido pelo ciúme, tem testemunhas de que não mudou de roupa e não é normal que o botão de metal amarelo cosido com linha preta pertencesse ao seu fato castanho. Inocente, em princípio. Note-se também que a roupa vermelha de Nora não devia comportar o mesmo botão.

03 – O amigo podia ter morto a Nora, despeitado por se sentir o eterno recusado. Não fica completamente ilibado pelo facto de ter vestido um gilet bege com botões de madeira, pois podia ter mudado de roupa, mas não há nada no seu depoimento que levante suspeitas.

04 – Já quanto ao sedutor o caso é diferente. Para começar, segundo o mordomo, devia estar vestido com o seu blazer escuro e é muito possível que o botão de metal cosido com linha preta lhe pertença. Um blazer é, por definição, um casaco, muitas vezes preto, com botões de metal, casualmente com um emblema ou brasão bordado no bolso exterior superior esquerdo.

05 – O marido, esse, teve conhecimento da morte da mulher, uma vez que até teve de reconhecer o cadáver, mas tanto o amigo, como o barqueiro, como o mordomo, mostram ignorar o que se terá passado. Pelo contrário, o sedutor mostra já saber que a Nora morreu. E, pouco depois, declara ainda que ela, afinal, teria já regressado a casa. Evidente contradição: primeiro descai-se e mais tarde tenta aparentar inocência.

06 – O sedutor apresenta-se na polícia, impecável, de fato de treino, ténis brancos e uma toalha branca à volta do pescoço. É de estranhar tão boa apresentação após uma corrida de cerca de 20 quilómetros na margem do rio, tanto mais que, de madrugada, chovera abundantemente.

07 – O mordomo afirma que o patrão estava já vestido para sair com o tal blazer quando ficou furioso com o desaparecimento do valiosissímo prato de porcelana, portanto pelas 9, 9 e meia da manhã. Mas ele afirma que deu pelo furto do prato só quando se dirigia à polícia, ou seja, bastante depois do meio-dia. Estranhamente, não atribuiu grande valor ao objecto roubado (em contradição com as declarações do mordomo), mas pergunta à polícia se não terá aparecido na ponte, já que ele nada encontrara. Como pode ele saber que era lá que o prato deveria estar? Certamente por saber que foi lá que algo aconteceu, de que ele não deveria ter conhecimento se estivesse inocente.

08 – Foi por todas estas suspeitas que a polícia norueguesa se inclinou decididamente para indiciar o sedutor como autor da morte da jovem Nora, o que ele acabou por confessar no decorrer do processo. Também os cabelos escuros e curtos encontrados na ponte, vieram a ser identificados como pertencendo-lhe.

09 – Como se terão passado as coisas? É igual à história do teste o trajecto da jovem em busca da solução para o seu drama. Faltará dizer que, quando foi pedir o dinheiro ao sedutor, terá habilidosamente surripiado o prato de porcelana, com o qual pensaria pagar ao barqueiro. O Krogstad terá notado o furto após estar vestido para sair e, como o mordomo referiu, ficou furioso dado o enorme valor do objecto. Correu para a ponte, disposto a reaver o prato a qualquer preço. Passaria já, talvez, das 9 e meia da manhã e tanto o Rank como o Helmer, já teriam estado na ponte, sem se encontrarem e sem terem visto ninguém. Nora, enquanto o sedutor se vestia para sair e dava pela falta do prato, tinha já ido junto do barqueiro pela segunda vez sem o conseguir convencer e andado ainda algum tempo atrás do barco, pela margem, razão pela qual não terá visto os outros dois. Finalmente, voltou à ponte; o louco já lá não estava, mas tentou a passagem cautelosa, não fosse ele estar por ali escondido. Para eliminar vestígios do sucedido (e por não ser já necessário) terá atirado o prato para o rio, onde ficou até ser encontrado dias mais tarde. O sedutor chega, agarra-a, ela nega ter o prato, gera-se violência durante a qual ele perde um botão do blazer e, furioso, estrangula-a, deixando-a caída na ponte. Não vê o botão perdido nem o prato no fundo do rio. Convencido de que o louco viria a ser acusado do crime, corre para casa, não é visto pelo mordomo que está na jardinagem, e muda de roupa para o fato de treino com o intuito de simular a corrida pela margem do rio, o que manifestamente não aconteceu, senão o barqueiro tê-lo-ia visto e referido.

10 – O detective norueguês, querendo ocultar os verdadeiros nomes dos intervenientes reais, socorreu-se de uma ficção que lhe era próxima, com a qual havia curiosas coincidências. Um escritor norueguês de nome Henrik Ibsen, cujo centenário da morte passou em 2006, escreveu um drama conhecidíssimo intitulado Uma Casa de Boneca, peça clássica do repertório universal, que até recentemente voltou a ser representada em Portugal. Nela, a protagonista chama-se Nora e é uma jovem casada com um advogado de nome Helmer. Ela sente-se pouco acompanhada pelo marido, escravo da carreira e do trabalho. Nora tem um amigo médico, o Dr. Rank, o qual nutre por ela um amor platónico já antigo. E há ainda outra personagem, de nome Krogstad, que não tem na peça a mesma função que nesta história, mas, em todo o caso, é o elemento perturbador que vem alterar a suposta paz do lar burguês. Só que na peça de Ibsen ninguém morre. Ao contrário, Nora liberta-se de um marido que a não compreende e abandona o lar, livre e independente, o que, em 1879, constituiu um escândalo considerável.

© DANIEL FALCÃO