Publicação: “Público”

Coordenador: Luís Pessoa

 

 

Secção nº 1

1 de Julho de 1992

 

 

PRODUÇÕES, PRODUTORES E DECIFRADORES

Luís Pessoa

 

INTRODUÇÃO

O trabalho dos produtores será sempre respeitado na nossa secção, não devendo haver susceptibilidades feridas por qualquer crítica, mesmo que seja entendida como injusta.

Quando nos pronunciamos sobre a excelência de qualquer produção de natureza intelectual, há sempre diversas interpretações e leituras possíveis e temos que estar devidamente preparados para ouvirmos tudo aquilo que não gostaríamos de ouvir.

A franqueza nos comentários, mesmo se injustos, é sempre um factor positivo e assim deve ser entendido por todos.

Ao contrário de outras vozes, queremos reforçar que qualquer participante do nosso passatempo pode e deve pronunciar-se sobre TODOS os assuntos que nos digam respeito e por isso não aceitamos que alguém ataque ou contra-ataque na base de o seu opositor não ser produtor e por isso não ter direito a melhor opinião.

Para exercermos o direito à crítica não é necessário sermos capazes de fazer melhor.

Se criticamos um político porque entendemos que faz mal o seu trabalho, não precisamos de já ter estado na posição dele para avaliarmos o seu desempenho.

Como utente de um problema policiário, que vamos tentar solucionar, não precisamos de saber fazer melhor para apontarmos os erros e falhas que nesse problema encontramos.

Portanto, as conclusões a que pretendemos chegar serão sempre um somatório de diferentes críticas e visões, vindas de produtores, solucionistas, simples leitores desinteressados da competição e não apenas de produtores actuais ou antigos.

 

O PRODUTOR

É um elo principal do nosso passatempo. Sem produtores capazes de nos desafiarem em cada momento, nunca poderemos ter competição aliciante.

Todos os leitores podem ser produtores, bastando para isso que tenham um domínio capaz da língua portuguesa, algum gosto pelo mundo policial e capacidade para contar uma história que ele mesmo vai interromper no momento em que entender que estão fornecidos os elementos para que os outros confrades a terminem.

O produtor é “rei e senhor” da sua história, pode orientá-la para onde quiser e “fabricar” mundos e cenários que podem ser irreais, desde que todos esses dados sejam transmitidos aos decifradores.

O que é obrigatório é que haja uma coerência de discurso, que todos os dados se articulem devidamente e estejam inequivocamente colocados no enunciado, ainda que de forma dissimulada.

Será sempre tarefa dos decifradores recriarem o ambiente em que se desenvolve a acção e agirem em conformidade.

Em resumo, a importância do produtor é tal que podemos considerá-lo o verdadeiro “dono” do problema, com todas as implicações que esse conceito pode ter, também de propriedade.

Se um autor nos propuser um mundo ao contrário, em que a força da gravidade é inversa, em que a cabeça está nos pés, o dever do decifrador é aceitar esses elementos como concretos e não os poderá questionar à luz dos conhecimentos anteriormente adquiridos.

O que cabe ao produtor é explicar no concreto que mundo nos está a apresentar, em que as regras e leis da física, por exemplo, não se aplicam no todo ou na parte. Fazendo passar a acção dentro de uma nave espacial, por exemplo. Ou em que as cores não são as que conhecemos, o céu pode ser amarelo, a relva vermelha, o mar cor-de-rosa, etc.., não podendo o decifrador basear a sua solução na contradição da coloração. Se o autor assim construiu o seu mundo, assim é esse mundo.

 

A PRODUÇÃO

Tratando-se da obra de criação de um produtor, é ela a base do nosso passatempo.

Não tem, obrigatoriamente, regras definidas nem conceitos rígidos. Um conto de índole policial, em que a narrativa é interrompida pelo seu autor para abrir o espaço necessário à interpretação e análise dos elementos fornecidos, com vista à resolução do enigma, eis, no essencial, um problema policial.

O autor, como referimos, é dono e senhor da narrativa, coloca as personagens onde melhor servem os seus interesses, cria o ambiente onde se desenrola a acção, inventa, se assim quiser, situações.

Mas está refém da obrigatoriedade de fornecer os dados essenciais aos decifradores.

Ao invés, se as acções se passam no nosso “mundo real”, o autor está dispensado do dever de descrição aprofundada e completa do ambiente onde se desenrola a acção.

Queremos dizer com isto que se a cena se passa em Lisboa, no Outono, não é preciso caracterizar a cidade ou referir os sinais outonais, porque é tarefa dos decifradores buscarem essa informação.

Mas se a acção se passa numa cidade algures no mundo, aí o produtor tem que fornecer a descrição pormenorizada que possa conduzir o decifrador até ao ponto que o produtor pretende que ele atinja.

Daí que digamos que um caso policial não tem que ser real, não tem que ser verificável à luz dos nossos conhecimentos anteriores, mas também pode ser assim. Essa escolha não é dos decifradores, mas sim dos produtores.

 

O DECIFRADOR

Ele é o verdadeiro detective que vai decifrar os casos e lutar contra os criminosos. É para ele que se produzem os desafios, em última análise.

Tal como na vida real, da sua capacidade vai depender o sucesso da luta contra o crime. Vai estar perante cenas que os produtores lhe vão colocar e vai sair-se delas em conformidade com as suas reais capacidades.

É ele o rei e senhor da decifração, é ele o dono da solução.

Nesta fase, o produtor já não tem intervenção. A sua tarefa terminou no momento em que colocou o desafio, em que descreveu capazmente a situação e resta-lhe sair de cena.

Se a produção está bem elaborada, se apenas permite uma solução válida, o grande teste vai ser resistir às inúmeras abordagens a que todos os decifradores a vão sujeitar.

O trabalho solitário do produtor vai ser agora testado até ao limite por centenas ou milhares de decifradores.

 

In Policiário 1422, 3 de Novembro de 2018

© DANIEL FALCÃO