DESAFIOS

POLICIÁRIOS

UM ENIGMA PARA A PÁSCOA

 

 

 

A MORTE DO VINICULTOR

Autor: Rip Kirby

 

O inspector Eduardo Trindade tinha acabado de almoçar e preparava-se para assistir ao “Jornal da Tarde” da RTP que estava prestes a ter o seu início. Faltavam apenas alguns segundos quando a campainha do telefone retiniu. Levantou-se, com um gesto de desagrado, da sua poltrona preferida e foi atender. Apesar dos muitos anos de serviço ainda não se tinha acostumado a ser interrompido nos seus momentos de repouso.

Era o seu ajudante, sargento Silveira, informando-o de que a sua presença estava sendo requisitada para mais uma investigação.

O engenheiro Pereira da Silva, importante vinicultor da região, havia sido encontrado morto na sua residência que ficava numa das suas propriedades agrícolas a pouca distância da cidade.

Eduardo Trindade recomendou ao sargento que o viesse buscar a sua casa, desligou o telefone, vestiu o casaco e a gabardina, desligou a televisão e saiu. Acabava de chegar à rua quando o sargento Silveira parou em frente da sua porta. Tomou lugar ao lado do seu ajudante e arrancaram para o seu destino.

O inspector morava mesmo à saída da cidade pelo que menos de cinco minutos depois já estavam na estrada nacional.

Havia nevado durante toda a semana, mas na madrugada desse dia o nevão tinha parado e a estrada havia sido limpa pelo que Silveira acelerou a fundo. A corrida, depois que saíram da cidade, durou cerca de oito minutos durante a qual inspector e ajudante se mantiveram mudos. O sargento atento à condução e o inspector absorto na contemplação da paisagem que ladeava a estrada. A neve cobrira tudo com o seu manto branco. Trindade só saiu da sua abstracção quando o carro abrandou e virou à direita para o caminho vicinal que conduzia à residência de Pereira da Silva.

Aqui a condução teve que ser mais cuidadosa. O caminho não tinha sido limpo e o carro, atravessando-se algumas vezes no caminho, seguia agora com alguma lentidão por sobre o imaculado tapete branco que se estendia à sua frente, até que foi parar defronte da porta principal da casa do engenheiro. Eram exactamente 13h45.

O inspector apeou-se do carro e subiu o lance de escadas, oito ou nove degraus, que conduzia a uma varanda que ocupava meia fachada do edifício, metade para cada lado da porta principal, onde foi recebido por um indivíduo aparentando 60 anos que se identificou como sendo Jorge Dias e secretário de Pereira da Silva. Fora ele quem telefonara para a polícia.

Eduardo Trindade examinou com um olhar a parte da fachada limitada pela varanda e verificou que de cada lado da porta principal havia uma porta-janela, cada uma delas ladeada por sua vez por duas janelas de cada lado. Para além da varanda havia outras janelas.

Jorge Dias conduziu o inspector para uma das portas-janela e introduziu-o num aposento que o investigador logo deduziu tratar-se do gabinete de trabalho do engenheiro.

Tratava-se de uma sala ampla, mobilada com gosto e qualidade. Para além da porta por onde entrara, naquela parede havia quatro janelas. Uma à direita de quem entra e três à esquerda. A janela mais distante estava aberta e ficava já fora dos limites da varanda. Nos espaços entre as janelas havia estantes com livros. A parede à direita era ocupada por um grande quadro representando dois cavalos galopando num prado e tinha a assinatura de Vanda Silva. Na parede em frente havia uma porta ladeada por estantes com livros e que comunicava com o interior da casa. Na parede da esquerda havia duas fotografias em ponto grande emolduradas. Uma era de um cavalheiro de aspecto distinto aparentando cerca de 70 anos e a outra de uma senhora bem mais jovem. Era por baixo destas fotografias que o engenheiro tinha a sua mesa de trabalho, a que nesse momento estava sentado tendo a cabeça tombada sobre ela. Na testa o inspector viu o buraco por onde entrara a bala que o matara. Pelo aspecto do ferimento Eduardo Trindade deduziu que o tiro teria sido disparado a pouco mais de um metro de distância. O tampo da mesa e alguns papéis estavam cobertos de sangue que escorrera, também, para o chão alcatifado. À esquerda do morto, no chão, estava uma cápsula de bala de pequeno calibre. A arma que disparou o tiro mortal foi posteriormente encontrada, limpa de impressões digitais, no quarto que Jorge Dias ocupava quando pernoitava em casa do patrão e era propriedade do engenheiro.

Interrogado por Eduardo Trindade, Jorge Dias disse que estava na cozinha almoçando quando ouviu o tiro. Ficara indeciso durante breves instantes, mas logo correu para o gabinete do patrão. Quando ali chegou, já lá estava o senhor Carlos, enteado do engenheiro, que lhe disse que o padrinho estava morto e que telefonasse para a polícia. O que fez imediatamente.

Entretanto, o sargento Silveira que havia recolhido os depoimentos dos restantes habitantes da casa, veio ter com o seu superior para lhe dar conta da sua diligência.

Eduardo Trindade pegou nos papéis que o sargento lhe estendeu, deu uma nova ordem ao seu ajudante e este saiu apressado. Só depois o inspector prestou atenção aos apontamentos do Silveira, que geralmente são bastante prolixos, e deu-lhes uma rápida leitura.

Eis, resumidamente, o que o inspector leu:

Carlos Andrade, 30 anos, enteado de Pereira da Silva, quando interrogado disse que se dirigia para o gabinete do padrinho quando escutou o tiro. Correu de imediato para ali e ao entrar ainda viu o vulto de um homem a saltar para fora pela janela. Foi à janela e viu o referido fugitivo perdendo-se entre o arvoredo que, a pouca distância, rodeava a casa. Ficou com a impressão de ter escutado a seguir o ruído de um carro afastando-se da propriedade, mas não garantia. Logo de seguida, entrou no gabinete o secretário do padrinho a quem encarregou de telefonar à polícia. Ele subiu ao piso superior onde foi informar a mãe do ocorrido.

Vanda Silva, 55 anos ou pouco mais, esposa do morto, disse que estava no andar de cima onde tinha o seu estúdio para onde tinha ido logo após ter almoçado com o marido e com o filho. O marido havia ido para o escritório depois de ter dito ao Carlos que precisava falar urgentemente com ele. “Por isso, estranhei quando pouco depois o meu filho entrou no estúdio dizendo que o padrinho tinha sido assassinado. Fui imediatamente para baixo mas não tive coragem para ir ver o meu marido.”

Georgina Ferreira, 30 anos, empregada de limpeza da casa, não sabia de nada, ninguém lhe tinha dito nada. Tinha acabado de almoçar e estava ali na varanda das traseiras, repousando um pouco antes de voltar à lida doméstica, quando se apercebeu de que havia uma certa agitação. Mas deixou-se ficar onde estava. Não percebia o motivo daquele interrogatório.

Alice Gomes, 60 anos, cozinheira e governanta. “Estava na cozinha conversando com o senhor Jorge Dias que estava almoçando quando ouvimos um tiro. O senhor Dias saiu correndo e pouco depois, quando voltou, disse-me que o patrão tinha morrido e que já avisara a polícia.” Ela não sabia mais nada porque não tinha saído da cozinha.

Jorge Dias, para além do que já havia dito ao inspector, a propósito de uma pergunta que lhe foi feita pelo sargento, disse que não sabia ao certo o que o patrão tinha para dizer ao enteado mas que calculava que seria para lhe chamar a atenção para as despesas exageradas que fazia e para o pouco trabalho que executava tendo em conta o que ganhava. Possivelmente iria dizer-lhe mais uma vez, e certamente que agora não seria só ameaça, que ia cortar os abonos constantes que lhe fazia.

Depois de ler estes depoimentos Eduardo Trindade dirigiu-se pensativo para a janela que estava aberta e dali ficou contemplando a paisagem imaculadamente branca e lisa que, cerca de dois metros abaixo do parapeito da janela, se estendia até ao pequeno pinhal que se avistava dali. Apenas para a sua esquerda a vista ficava limitada pela balaustrada lateral da varanda que terminava ali a pouco mais de três metros e meio da janela em que se encontrava.

Entretanto o sargento Silveira voltou e disse-lhe que a propriedade estava rodeada por uma cerca de arame farpado que se encontrava em estado impecável havendo apenas a passagem sem cancela para o único caminho, por onde eles tinham vindo, que dava acesso à estrada.

Depois que se soube que a arma do crime era propriedade do engenheiro, o inspector pretendeu saber quem tinha conhecimento da sua existência e do lugar onde era guardada.

Vanda Silva respondeu que, de facto, sabia que o marido possuía aquela arma, embora quase nunca lhe tocasse e que esta costumava estar na mesa-de-cabeceira do lado dele.

Jorge Dias e a cozinheira afirmaram que desconheciam a existência da arma, enquanto que Georgina disse que, já por diversas vezes, a tinha visto quando fazia a limpeza no quarto dos patrões.

Carlos Andrade, por sua vez, afirmou que sabia que o padrinho tinha a arma em questão e algumas vezes o vira tratando da sua limpeza. Ainda recentemente isso acontecera.

Posto isto o inspector deu por terminada a sua estadia ali, retirando-se com o seu ajudante.

Quando chegou ao seu departamento aguardava-o o dr. Dionísio Cabral, advogado do falecido engenheiro, que se punha ao dispor do inspector caso este necessitasse. Tinha sido Jorge Dias quem, por telefone, o pusera ao corrente da tragédia.

Eduardo Trindade agradeceu e pediu-lhe que ele lhe falasse, caso isso não traísse matéria confidencial, da forma como seriam repartidos os bens do engenheiro Pereira da Silva.

O grosso da fortuna iria para Alberto Pereira da Silva, filho do falecido e da sua primeira esposa também já falecida. Alberto encontrava-se no norte do país onde geria uma vinha.

Vanda Silva ficaria apenas com uma moradia na cidade e uma pensão mensal de cinco mil euros. Isto devia-se a um acordo estabelecido antes do casamento com uma única diferença. Nesse acordo, a pensão era de apenas dois mil e quinhentos euros, mas posteriormente o engenheiro decidiu alterar para o dobro. Vanda Silva desconhecia essa alteração.

 A Carlos Andrade caberia por testamento uma importância de cinquenta mil euros. Contudo Pereira da Silva ultimamente andava descontente com o rapaz devido à sua estroinice e ao pouco empenho que punha no trabalho pelo que pensava eliminar do seu testamento a cláusula que o beneficiava.

Jorge Dias que trabalhava havia mais de 20 anos para o engenheiro teria, a título de pensão de reforma, uma verba mensal de mil e quinhentos euros. Tanto esta pensão como a de Vanda Silva estavam asseguradas por um fundo de reserva feito expressamente para esse efeito.

Estes são os elementos que o inspector possui sobre este caso. Se por acaso desejar dar-lhe uma ajuda faça o seu relatório detalhado e envie para ele ou para quem o representar.

Receba desde já os seus agradecimentos.

 

{ publicado no boletim “O LIDADOR… das CINZENTAS” nº 24 de Abril de 2006 }

 

Desafios policiários de RIP KIRBY

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2006