CLUBE  DE  DETECTIVES

 

TORNEIO JARTUR MAMEDE

Problema nº 3

 

 

A MORTE DA MICAS PEIXEIRA

Autor: Inspector Boavida

 

O subchefe Pinguinhas estava mais mal-humorado do que nunca. Aquilo podia ser um mau prenúncio, dizia-se na esquadra. “O que estará por acontecer? Sempre que ele está de trombas, é certo e sabido que temos tempestade ou desgraça pela costa.” As razões do seu mau humor não tinham nada a ver com o tempo, apesar do Instituto Nacional de Meteorologia ter anunciado chuva e ventos fortes para quase todo o país. O estado de espírito triste e sombrio que exibia estava relacionado com o seu sportinguismo assanhado. O clube do seu coração recebia naquela noite os escoceses do Glasgow Rangers e ele não podia ir ver o duelo ao vivo.

Passava pouco das cinco da tarde e o Pinguinhas não parava de resmungar com a escala de serviços, que o obrigava a permanecer na esquadra. Ainda tentara mudar de turno, mas nenhum graduado teve a gentileza de aceitar a troca. À noite jogava o seu Sporting e ele ali enfiado, quase a espumar de raiva. Noutros tempos, não pensaria duas vezes. Mal a hora do jogo estivesse a chegar, abandonaria o posto. Mas agora era muito arriscado. Há três anos que a esquadra não tem porta e algo lhe dizia que, mais cedo ou mais tarde, a malta dos jornais viria a descobrir o caso, o que daria bronca da grossa pela certa. Não, ele não podia sair dali… a não ser em serviço na zona.

O serviço chegou-lhe pelo guarda Lopes: mais um telefonema de casa da Micas peixeira e do Tóino pintor! Há umas semanas que era raro o dia em que o Tóino não malhava na mulher. O homem metera na cabeça que ela andava enrolada com um vizinho e por via disso chegava-lhe a roupa ao pêlo. Eles moravam ali perto, nas Portas de Santo Antão, num dos poucos edifícios que ainda resistem à especulação imobiliária. O Pinguinhas resolveu ir ele mesmo até lá. Quando chegou à porta da rua, deu de caras com a cigana Etelvina, uma velha mais surda do que um penedo, que assim que o viu desatou aos gritos: “Ai, santo Deus, que o malandro do Tóino matou a Micas!”

O Pinguinhas galgou os degraus até ao primeiro esquerdo e encontrou a porta aberta. O Tóino pintor agarrou-se a ele, deixando-lhe na farda as mesmas marcas de tinta que se viam claramente na blusa da mulher, caída entre a cama e o roupeiro: “Não fui eu, não fui eu! Juro que não fui eu!” A Micas jazia, morta. Tinha sido agredida com violência e estrangulada. Os sinais não deixavam dúvidas. O Tóino insistia, nervoso: “Desta vez nem lhe bati! Passámos até uma noite agradável. Fizemos as pazes e foi como se tivemos vivido uma espécie de segunda noite de núpcias.” Havia laivos de sinceridade nos olhos do Tóino e… arranhões recentes no seu pescoço.

O Tóino fez saber que se levantou às oito e que a mulher ficou na cama, a descansar. Ele tinha um trabalho no Príncipe Real e ela faltou à venda. À uma da tarde, largou o rolo e a trincha, para que os donos da casa onde fazia o biscate almoçassem. Comprou duas sandes e uma cerveja e sentou-se num banco do jardim. Não havia ninguém por lá. Duas horas depois, voltou às pinturas. Passava das cinco quando regressou a casa. Tocou à campainha e a Micas não respondeu. Pegou na chave, abriu a porta, chamou por ela e… nada. Foi até ao quarto e viu a mulher caída no chão. Debruçou-se sobre ela, abanou-a, mas nada havia a fazer. A Micas já estava morta.

O Pinguinhas não hesitou nem mais um instante. Pegou no telemóvel e ligou para a Judiciária. Entretanto, entrou pela casa adentro o vizinho do primeiro direito, o advogado Camurça, que começou por se atirar ferozmente ao Tóino: “Então, seu monstro, está contente, está?!” Para amansar a fera, o subchefe quis saber por onde andou o doutorzeco durante o dia. O advogado disse ter estado num julgamento, no Tribunal da Boa Hora, que acabou por volta da uma. Foi até ao escritório, onde almoçou, sozinho, um iogurte e duas maçãs. Tinha um corte na parte superior do dedo polegar da mão direita, provocado, segundo ele, por uma faca quando descascava uma maçã.

O advogado foi dizendo que tinha saído do escritório por volta das duas horas, antes dos seus colegas e sócios voltarem do almoço, para casa de um cliente conhecido, onde estivera até perto das cinco da tarde. Mas o Pinguinhas já mal o ouvia, obcecado que estava com a ferida que ornamentava o dedo polegar do Camurça. Um e outro foram subitamente interrompidos pela chegada intempestiva do piloto aviador Murtosa, que morava no segundo esquerdo. Ele vinha muito afogueado e queria saber à viva força o que se tinha passado. Mas o subchefe Pinguinhas não lhe deu muita saída: estava mais interessado em fazer perguntas do que em dar respostas!

O Murtosa lá foi dizendo que tinha aproveitado o seu dia de folga para tratar de uns assuntos burocráticos relacionados com um terreno que havia comprado na Serra da Lousã. Saíra de casa cedo, tendo atestado o carro na Rotunda do Relógio, ali ao pé do Aeroporto (retirou da carteira o recibo da gasolina para confirmar a hora: nove em ponto). Seguiu depois para a Pampilhosa. Esperou que os serviços da Câmara reabrissem, tratou do que tinha a tratar, deu um salto até à sua propriedade e regressou depois a Lisboa. Servindo-se de um outro recibo, confirmou que tinha voltado a meter combustível no Pombal, às 16h30. Chegara agora a casa. Eram sete da tarde.

Questionados sobre se tinham ouvido algo de anormal durante a noite e a manhã, antes de saírem de casa, Murtosa e Camurça referiram ambos o barulho feito pelo casal naquela madrugada. “Eram sete e meia e eu ainda não conseguia dormir” – disse o Murtosa. “Não eram barulhos de discussão, não. Ou a Micas era masoquista ou o Tóino é sádico. Então, depois de uma noite de amor, ele dá-lhe uma tareia que a mata?!” – acrescentou o Camurça. Foi nessa altura que chegou a Judiciária. O piquete era chefiado pelo carismático Marcos Dias, que vinha acompanhado pelo seu amigo Jartur e mais dois elementos. Pinguinhas contou o que sabia e regressou à esquadra.

 A Etelvina ainda se encontrava à porta da rua a contar a desgraça da Micas à gente conhecida. O Pinguinhas questionou-a sobre se tinha ouvido algo de estranho em casa da peixeira, ao que ela respondeu que não. Perguntou-lhe pelo neto, o Chico da Coca. “Ainda está a dormir, o malandro. Chegou por volta da uma e meia da tarde, a tremer muito e de olhos esgazeados. Deitou-se e ainda há pouco ressonava que nem um porco. Pouca sorte a minha, sôr subchefe.” Antes de abandonar aquele prédio de dois andares, o Pinguinhas ainda perguntou se já morava alguém no rés-do-chão. “Não, continua desabitado desde que o Costa bateu a bota, já lá vão mais de três meses.”

Pouco passava das nove da noite quando o telefone voltou a tocar na esquadra. O guarda Lopes passou a chamada ao subchefe. Era o seu amigo Jartur: “A mulher foi estrangulada entre as 13h10 e as 13h40 e o criminoso já confessou o crime.” O Pinguinhas mal agradeceu a gentileza do telefonema e continuou vidrado no televisor que tinha em cima da secretária. O seu Sporting perdia por um a zero, mas ele ainda tinha fé… Quando o jogo acabou, estava duplamente chateado: os Leões tinham ido à vida e ele ficara sem saber quem tinha assassinado a Micas e porquê! “Não vou agora chatear o Jartur. Talvez o pessoal que lê o Almeirinense consiga ajudar-me” – pensou.

 

{ publicado na secção “Mundo dos Passatempos” do jornal “O Almeirinense” em 1 de Novembro de 2008 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2008