CLUBE  DE  DETECTIVES

 

TORNEIO JARTUR MAMEDE

Problema nº 7

 

 

O APRENDIZ FIDALGO

Autor: Inspector Fidalgo

 

Decorria um ano qualquer da década de 70 do século de todos os exageros, o XX.

Numa terra qualquer, algures num pequeno país rectangular com duas frentes de mar, um indivíduo de média estatura, cabelo ralo e algo anárquico, com ar satisfeito, irradiando alegria no sorriso gaiato, terminava um curso de formação para detectives, com um problema para resolução…

 – Olha, pá, estás numa mansão enorme, magnífica. Entras por uma porta pesadíssima, com vitrais brilhantes e chegas a um imenso espaço aberto. Em frente, ao fundo, a porta do elevador de acesso ao piso superior. De ambos os lados dessa porta, abrem-se os caminhos que levam à imensa sala de jantar. Na parede lateral esquerda, vislumbram-se as portas de acesso a outras divisões – cozinha, quartos de criados, salas de banho. Encostada à parede do lado direito, majestosa, vai-se erguendo uma escadaria em pedra granítica, obra excelente de engenharia porque vai torneando, suavemente, para a esquerda e depois para a direita, até ficar centrada, no piso superior, com a porta do elevador, tudo sem apoio de qualquer coluna. No piso de cima, ao subires pelas escadas, chegas a um átrio amplo. Do lado direito, vês um grande vitral, ocupando toda a parede. Para a esquerda, um pequeno corredor com cerca de 4 metros de comprimento, que depois roda para a direita e continua, longo, abrindo 3 portas para o lado direito, que dão acesso a outros tantos quartos.

– Espere aí, Sete de Espadas. Tanta informação tem que ser devidamente digerida! Numa folha de papel, Fidalgo foi apontando algumas notas e garatujou uns rabiscos esquemáticos… – Vá, Sete, vamos em frente…

– Vamos! Na mansão moram 3 irmãos e vários empregados. Estes têm quartos no piso de baixo e só nos interessa um deles, como vamos ver. Lá em cima, a partir do átrio, o José tem o primeiro quarto; o João o segundo; o Jaime o último.

O Jaime é o mais novo, amigo da farra e dos copos, sempre a abrir na vida. As manhãs são sagradas, para dormir profundamente, e esta manhã, ao que parece, não foi excepção. Depois de uma noite atribulada, chegou por volta das 7h15 da manhã e teve que ser amparado pelo Baltazar, o empregado que nos interessa, que o levou até ao elevador, o acompanhou até ao quarto e o ajudou a deitar-se.

O João é deficiente. Apenas se pode deslocar em cadeira de rodas e é com muita dificuldade que consegue usar o seu comando. Tem que ser colocado na cadeira e dela retirado. Esta é accionada por bateria que é recarregada na corrente eléctrica, mediante um cabo amovível que a liga a uma qualquer tomada de casa. De qualquer modo, por uma questão de segurança, a cadeira só funciona quando os cintos de segurança, cruzados sobre o peito e no ventre, estão devidamente presos – o que apenas pode ser feito por outra pessoa – mantendo-o sempre agarrado à pesada e bastante estável cadeira, em caso de acidente.

Apesar da porta do quarto do João ter uma mola que a impede de ficar aberta por engano, ainda para maior segurança, foi instalado um minúsculo fio sensor, que atravessa o corredor, num ponto intermédio entre as portas dos quartos do João e do José e que acciona uma campainha bastante sonora, quer no corredor, quer no escritório privativo que está dentro do quarto do José. Destina-se a dar o alarme e evitar que, em caso de descuido, o João consiga passar na direcção das escadas, sem o devido acompanhamento. Para não ser accionada sempre que alguém passa, basta que não seja pisado o fio.

O José é o mais velho e o acompanhante do João, por quem se sente responsável por ter sido para o salvar de ser atropelado por uma carroça puxada por cavalos que ele ficou naquele estado físico. Todos os dias, por volta das 6 horas, o José vai ao quarto do João, veste-o, coloca-o na cadeira. Desliga o cabo do carregador da bateria, enrola-o e guarda-o na bolsa da cadeira, encaminhando-se, então, para o elevador. Depois de descerem, passam pela cozinha onde comem alguma coisa e às 6h30 já estão a passear pela propriedade, vão até junto dos cavalos, regressando por volta das 7h30, dirigindo-se directamente ao quarto do João, onde este fica a descansar, sentado na cadeira, a ver um pouco de televisão até cerca das 10h30, hora em que o irmão, depois de tratar das papeladas no seu escritório, o vai buscar para virem para o piso inferior, até à hora de almoço.

Naquele dia, no entanto, algo correu mal.

Um prolongado estrondo alertou toda a gente, eram 7h35. Do piso de baixo acorreram os empregados e do piso de cima o José, que assomou à porta do seu quarto, quando o Baltazar começava a percorrer o corredor, aparentemente vindo do quarto do Jaime, para assistirem à triste visão do João caído no último degrau da enorme escadaria, com o pescoço completamente torcido, enquanto, alguns metros mais adiante, a cadeira estava imóvel, mas com a roda do lado direito ainda rodando, macabramente.

Inconsolável, o José explicava vezes sem conta o que fizera naquela manhã… Tinham cumprido toda a rotina habitual e deixara o irmão no quarto, às 7h30 certinhas – ele mesmo confirmou, na televisão, antes de sair.

Demorou um pouco mais porque teve que pôr novamente a bateria da cadeira a carregar, já que continuava a dar sinais de fraqueza e foi para o seu escritório privativo. Mal se tinha sentado à secretária, ouviu o estrondo e veio à porta. Viu o Baltazar a vir do fundo do corredor, arrastando a perna doente e correu para as escadas, ouvindo, logo depois, os gritos dos outros empregados, só interrompidos pelo som estridente da campainha, que de súbito irrompeu.

– A campainha! A campainha não tocou! A campainha não tocou! – Repetia, desolado.

O Baltazar dizia que tinha acabado de deitar o patrão Jaime, que nem acordou e, ao ouvir o estrondo, correu para a porta, com as dificuldades que a sua perna aleijada lhe impunham e começou a percorrer o corredor. A princípio julgara que o barulho tinha sido no quarto do patrão João e notou que a porta estava encerrada, mas viu que o patrão José se encaminhou para os lados das escadas e ouviu gritos vindos lá de baixo, dos outros empregados, pelo que continuou até se juntar ao patrão José, no cimo das escadas. Tinha a certeza que a campainha só tocara pelas 6h15, como era habitual quando os patrões saíam e só voltou a soar quando ele, inadvertidamente, pisou a linha na correria para as escadas.

Naquela manhã, não houve qualquer corte de fornecimento eléctrico na casa e a carga da bateria da cadeira estava baixa, como dissera o José, mas suficiente para a movimentar no seu curto trajecto. O defeito de não carregar correctamente estava, como depois se confirmou, no cabo que o Inspector recolheu da bolsa da cadeira, para posterior análise.

Não houve qualquer coligação ou cumplicidade no incidente.

O João morreu na queda, pescoço partido…

 

– Ó Fidalgo, se queres concluir o curso no Quadro de Honra, estuda bem este caso e retira as tuas conclusões!

– Estou feito! O Sete de Espadas está a fazer de propósito; este é muito difícil…

 

{ publicado na secção “Mundo dos Passatempos” do jornal “O Almeirinense” em 1 de Março de 2009 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2009