CLUBE DE DETECTIVES |
TORNEIO
JARTUR MAMEDE Problema
nº 8 |
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A TRILHA
DO MORTO Autor:
Mário Campino Fim de ano torvo. Inclemente… Em meados de Dezembro de um ano da década de 40, duas cheias consumadas, uma terceira a assomar… Sementeiras perdidas, vinhais adiados… a própria erva, alimento das manadas, jazia sob as águas estagnadas… A inexorável lei da lezíria: ora pingue de abundância ora de míngua e agruras. Sol sem calor; crepúsculos precoces… O Tejo não voltara ao leito natural e a vala engrossava o caudal, prestes a galgar os combros. Auga, auga, q’anta Deus quer! Com os rostos estriados de rugas, abertas pêlos sóis dos estios e geadões invernios, os homens da borda-d’água cuspiam desdenhosos na água turva, eternos inocentes do legado fatalismo… E o tempo sem ajudar “a ponta de um corno” – comentam. Refugiam-se no falso lenitivo de duas goladas de vinhaça… assenta p’raí, home, q’eu ópois pago… Avô Palaló, de ordinário animoso e sereno, mostrava o semblante sombrio. Mas a vida tinha de continuar! Na “Azeitada”, o Firmino e meia dúzia de ganhões, “todo o santo dia metidos na lama até aos joelhos”, podavam as videiras com rama fora de água, talvez para manter os homens ocupados! Nas “Milheiras”, o Manel Hortelão não descurava as culturas hortenses. Lembrou a “Herdade das Ferrarias”, o duro arroteamento do solo demasiado amplo, demasiado estéril, de fracas colheitas… não se pode ficar pelo milho amarelo, só pelo apego à terra! Gorada a tentativa da compra aos Condes seus proprietários – “nunca gostara de tentar filhos em mulher alheia” – feirara os porcos, reduzira as semeadas, mantendo os arrozais junto à Ribeira de Muge, já que contraíra compromisso de parceria com os trabalhadores… impensável lesá-los. Sete dias antes do Natal, combinou com o “Chico Charneco” sementar a “Courela das Azinheiras”, pouco mais de dois campos de futebol. O Chico madrugou. Quando o dia clareou, já gradara, no sentido do comprimento, cruzado à lavra, quase toda a leira. O patrão lançou a semente, deixou algumas recomendações e montou a cavalo em direcção a Benfica, para ir à “Azeitada”. A faina do Chico era cobrir a semente. Começou por um dos extremos laterais, com nova passagem de grade sobre a qual equilibrava o corpo miúdo, a servir de lastro… Parou a meio, para dar água à mula e “engolir uma bucha”, voltando à gradagem, desta vez começando do lado oposto ao início, até encontrar a primeira fase. Deixou a grade e os tirantes onde terminou, mas fora do terreno, já que iria precisar dela para novo trabalho. Engatou a mula à carroça na qual carregou alguns cepos para a lareira – pedido da “Ti Zéfa” – e voltou a Almeirim, sem passar pelo Casal. O Casal era a preocupação do Avô Palaló. Consentiu que a Ana “Russa” ali se alojasse com o “Tó-Zé” e detestava desapossá-los. A “Ruiva” cedo provou o largo amargo da vida. Um corpo airoso, cabelo rubro, foi “enganada” pelo Quim Faia, que havia de emigrar, deixando-a. Dava-se a qualquer, por necessidade de pão e carinho mentido, até que o “Tó-Zé”, rude mas certo, a tirasse da “roda”. Ouvira-a, enquanto arrumava dois tarecos no Casal, feliz-amarga… Na sei s’as
cante, s’as chore, P’ra aluviar a ‘nha pena… S’eu canto, tudo m’esquece,
S’eu choro, tudo m ‘alembra. Lembrai o diabo… Quim voltou, na véspera do Natal. O mesmo franzino moreno, mas de fato inteiro às risquinhas. Lenço ao pescoço com laço, óculos de lentes azuis, boina à banda, “paivante nas ventas”, punha as cachopas de cabeça doida, com trejeitos de rufia e falas à “estrangêra”. Procurou Ana; todos se calavam. No dia seguinte ao Natal, rumou à Raposa pela madrugada. Aí obteve o paradeiro da antiga amante. A porta do Casal estava aberta e a rapariga, de costas, arrumava um cesto. Devagar, pôs os óculos sobre uma arca, fechou a porta suavemente e dirigiu-se-lhe. Pressentindo a presença desusada, ela voltou-se, ruborizada… Ele estendia os braços… Monamour… monamour!... ciciava, enquanto ela fugia para a cozinha, gritando-lhe: Suma-te! Rai’s ta quême… qu ’ele é bum home p ’ra mim!... A porta do casal foi aberta com estrondo. Quim saiu lesto pelas traseiras, escondendo-se nos ramos de um salgueiro. Ouviu ralhos, choros e pancadas… Alevo-lhe duas alembranças; uma é ’ma cachaporrada p’rós cornos – era a voz alterada do Tó-Zé. Saiu do esconderijo e meteu-se pelo carreiro da Ribeira, a caminho dos Paços. Ainda que tentasse recompor-se, ao Zé Vicente, sentado à porta da “venda”, não passou despercebida a ansiedade, talvez medo, que lhe ia nos olhos castanhos… – Viste lobo… ou alevaste “tampa” da Cachopa? Intão? – Na é isso, Ti Vicente… Vá, prante ai um pirolito p ’ra eu boer! – disparou. Mas preciso duma bicicleta p ’ra ir a Benfica, botar o olhar na ’nha tia Dores… – Bricicleta… bricicleta… o Jerolmo enxertador… Saiu ágil, sem beber e sem pagar, deixando Vicente atónito. O Jerónimo estava de partida para Almeirim, para a Casa Prudêncio. Acedeu em emprestar a “pedaleira” e pediu-lhe que, por uns dias, ordenhasse as vacas, tratasse delas e do burro, possante animal de raça espanhola, preso à manjedoura. Podia ficar na casa, se quisesse… Pendurou a jaqueta no ombro, pegou na caixa do ofício e tomou a charrete que o esperava. Tó-Zé procurou o Quim. Não o encontrou na Raposa, galgou a estrada de areia para os Paços e… apagou-se-lhe o rasto! Não voltou a casa nesse dia e noite. Ana pensou que estava zangado ou, porque a noite foi de chuva intensa, estivesse recolhido. Na tarde do dia seguinte, já angustiada, fechou a porta à chave e procurou o regedor da Raposa, com um mau pressentimento. Foi através deste que a notícia chegou aos Paços. Jerónimo, com a terra ensopada, não podia enxertar. Ia a chegar a casa, quando a voz da Rosa leiteira lhe chegou aos ouvidos: – na ma deixaste lête, duas vezes, pirum arrufado… Não compreendeu logo, mas, quando chegou a casa, viu que as vacas, com comida à frente, se encostavam à cancela, a mugirem penosamente. O burro, com a porta do curral aberta, solta, roía os restos das couves da horta… Entretanto, chegou o Quim, que “gramou a grande tosquia”, enquanto tirava e punha os grandes óculos azuis, incapaz de responder. Foi quando chegou a notícia do desaparecimento. Quim ofereceu-se para as buscas e desandou para as margens da Ribeira, que ladeiam as duas povoações – Paços e Raposa… Só no quarto dia havia de aparecer o corpo. Um participante nas buscas, a pouco mais de 200 metros do Casal, ao lado do caminho de areia, entrou nas giestas altas, notou um cheiro esquisito e olhando, ocasionalmente, para o campo de trigo, viu um corpo com as vestes do desaparecido, no centro do terreno. Gritou pelo regedor, que tomou a iniciativa de mandar chamar a G.N.R., não consentindo que alguém se aproximasse… o cheiro não pedia socorro! Três horas depois, o cabo André e um guarda pedalavam para as Ferrarias; Avô Palaló, avisado, montou o lusitano castanho, meteu-se por atalhos… Chegaram quase em simultâneo: os guardas, suados, de farda cinzenta e capacete género colonial, às voltas com as “mauseres”; Avô Palaló, fresco, talvez com as pernas mais arqueadas. Olhou o cabo indeciso, ouviu o regedor e convidou-os a irem ver o corpo – era, de facto, Tó-Zé, de costas, braços abertos, cabeça esmagada! Fora crime, sem dúvida… Olhou à volta, não viu pegadas nem rastos de transporte ou de luta. Parecia que “o homem caíra do céu” – comentou com o cabo. Observou o terreno em volta, onde o trigo a despontar formava um ténue tapete verde. Apenas que naquela última passagem da grade (que o Chico deixara na orla e lá continuava) o trigo não nascera, como que assinalando o trilho da morte. Absorto, assistiu ao transporte do corpo. Não era suficientemente importante para merecer a presença de um especialista em medicina legal; o Dr. Godinho faria uma autópsia sumária… Passava as rédeas sobre a cabeça do cavalo, quando o cabo se
aproximou. – Sr. Pa…
perdão… vocemessê ajuda-me? Trespassou-o com o
olhar, viu que o homem estava “completamente às aranhas”, acenou gravemente
com a cabeça num sim e voltou-lhe as costas. No Casal, conversou
demoradamente com Ana “Ruiva”, soube da abordagem e seu resultado. Ficou com
a certeza de que não voltara a ver o ex-amante e que nem queria voltar a
pôr-lhe os olhos Jerónimo contou a sua história. O Vicente, sempre em dia com as novidades, escudou-se na falta de memória. Ninguém “enxergara” a vítima, nos Paços. Era noite e tomou o caminho de casa, já que Almeirim era um dos vértices do rectângulo irregular; Paços, Raposa e Benfica os outros. No último dia do ano, recebeu a visita do cabo André. O Dr. Godinho tinha feito o serviço: a morte dera-se entre três a cinco dias antes, provavelmente, no dia em que saiu de casa. Recebera uma pedrada na cara, mas a morte resultou de duas pancadas violentas, talvez com um pau. O sangue acumulado indicava que o cadáver esteve deitado sobre o lado direito, durante algumas horas. Agradado pela humildade do cabo, Avô Palaló abriu-se num dos seus escassos sorrisos: – Sabe, cabo André, reuni indícios, dei-lhe um corpo que parece sólido… Tenho uma teoria, que lhe ofereço com satisfação, de quem matou aquele desgraçado e como o seu cadáver foi parar à minha seara, sem deixar rastos… Notas: Milheiras e Azeitada – Casais próximos; Ferrarias – Herdade próxima; Benfica (do Ribatejo), Paços (Negros) e Raposa – localidades próximas. É tempo de os leitores competirem com o Avô Palaló, elaborando os seus relatórios e descrevendo como entendem que o crime terá acontecido. { publicado na secção “Mundo dos Passatempos” do jornal “O Almeirinense” em 1 de Abril de 2009 } |
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© DANIEL FALCÃO, 2009 |
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