CLUBE  DE  DETECTIVES

 

SUPERTORNEIO POLICIÁRIO 1995

Prova nº 7

 

 

O CISNE E A ÁGUIA

Autor: O Falcão

 

Completavam-se, nesse dia, dois anos que o professor Raul de Bragança, ilustre literato, decidira arrancar com o estudo que viria a tomar o nome de “O Cisne e a Águia”. Nesse período, criara expectativas nos seus assistentes mais próximos. Mas nunca, apesar das muitas insistências, adiantara o mínimo que fosse sobre o trabalho. Os assistentes sabiam agora tanto quanto no dia anterior a essa já longínqua decisão.

Contudo, completo que estava o trabalho, chegara o momento de o apresentar aos seus colaboradores. A apresentação tinha que ser ainda nessa tarde. O professor só precisava de lhes telefonar, e foi o que fez.

Tadeu? Como estás?

Chegou o momento. Vem para cá!

Não faz mal. Aparece no fim da aula.

– …

Às seis horas, está combinado. Até logo.

Desligou. Agora era ele quem estava impaciente, ansioso por mostrar os resultados do seu intenso labor, mas ainda teria de esperar uma hora.

Hilário? Como vai?

– …

… vai ser hoje às seis horas. Pode cá estar?

Fico à espera. Até logo.

Pronto, já estava. Parecia uma criança desejosa de mostrar o seu novo brinquedo aos amigos. Agarrou nas folhas em que havia organizado toda a informação recolhida, ergueu-as, presas nas duas mãos, aproximou-as da face e beijou-as demoradamente.

Foram dois anos durante os quais lera e estudara todas as obras de Jacques-Bénigne Bossuet, prelado francês e grande nome da literatura clássica, também conhecido pelo cognome de “Águia de Meaux”, de onde foi bispo, e acérrimo opositor do quietismo, doutrina defendida por Salignac de la Mothe Fénelon, também ele um ilustre académico e prelado francês.

Conhecido como o “Cisne de Cambraia”, Fénelon foi um escritor hábil, sedutor, alimentado de recordações da Antiguidade Clássica, de estilo delicado e florido, fervoroso apoiante de Madame de Guyon, mística francesa adepta da doutrina quietista.

Os cognomes, só por si, exprimem como ambos diferiam em carácter. Contudo, embrenhados numa viva polémica, Fénelon viria a ser condenado pelo Tribunal de Roma.

Fora neste polémica que Raul de Bragança estivera enredado durante todo este tempo, mas finalmente estava prestes a terminar. “O Cisne e a Águia”, lia ele em voz alta – um título sem dúvida sugestivo.

Como tinha ainda que esperar cerca de uma hora, decidiu guardar o trabalho no seu local preferido, longe de olhares indiscretos. Meteu-o numa capa, levantou-se, puxou a cadeira que se encontrava defronte da secretária e encostou-a à parede, ao lado da estante. Subiu e pousou os “dois anos de pesquisa”.

Quando se preparava para descer, ouviu a campainha a tocar. Dirigiu-se então à porta de entrada, que ficava logo a seguir à porta de acesso ao gabinete e abriu-a.

Entre, entre. Chegou cedo – disse, satisfeito, o professor.

Entraram juntos no gabinete. Foram conversando, e o professor resistia à tentação de adiantar alguns pormenores sobre a pesquisa, ainda na ausência do seu outro auxiliar. Passados alguns instantes, decidiram não avançar enquanto não estivessem os três. Num dos momentos que se seguiram, o assistente, que tinha agarrado no corta-papel que estava sobre a secretária, aproximou-se de Raul de Bragança, que se encontrava de costas, e espetou-o… uma, duas, três, quatro vezes…

O professor caiu de bruços, ficando prostrado no chão, enquanto o assistente o observava, com o corta-papel na mão, seguro de que o matara. Olhou para um lado, olhou para o outro e decidiu escondê-lo, para o que ergueu o braço para o cimo da estante.

Furioso, desata a procurar o ainda desconhecido trabalho em todo o lado, na secretária, nas prateleiras da estante. Não encontra nada. Resmungando, retira-se, batendo a porta com brusquidão.

 

Como sempre, parece que adivinhas quando tenho um caso novo – diz o inspector Sousa.

Não me digas. Estava mesmo com vontade de exercitar as minhas celulazinhas. O que aconteceu desta vez? – pergunta Daniel Falcão.

Raul de Bragança, sugere-te alguma coisa?

Claro que sim. Já li muitos dos seus trabalhos. É um excelente investigador literário. Não conheço ninguém que vá tão fundo nos seus trabalhos. Foi assaltado?...

Não. Foi assassinado e, ao que parece, cobardemente, pelas costas. Bem, vamos até casa dele.

Durante o percurso conversaram. Como amigos de infância que eram, tinham muitos interesses em comum, entre os quais a investigação criminal. Daniel Falcão nunca quisera pertencer aos quadros da Polícia. Preferia estar por fora e, de vez em quando, colaborar com o amigo Sousa nos casos que iam aparecendo. Juntos, por várias vezes tinham conseguido excelentes resultados.

Chegaram à casa. Entraram no gabinete, onde encontraram outros polícias e o médico legista, acompanhados por dois desconhecidos. O inspector Sousa dirigiu-se aos colegas, enquanto Daniel Falcão observava o gabinete.

Era bastante sóbrio. Na parede oposta à entrada, encontrava-se uma estante com prateleiras, algumas das quais completamente desprovidas de livros, e uma cadeira encostada a ela. No chão, apenas um simples tapete, recoberto de livros e folhas soltas. Na parede à direita da entrada, um quadro de Dali, muito provavelmente uma cópia – “Cristo de São João da Cruz”. Defronte da estante, a parede, a que estava encostado um sofá, estava repleto de diplomas, acompanhados por algumas fotografias. Numa delas via-se a vítima junto dos dois desconhecidos que, nesse preciso momento, respondiam às perguntas do inspector Sousa.

O professor encontrava-se sentado, com os braços e parte da cabeça sobre a secretária. Por trás, uma porta de vidro de correr, ligeiramente entreaberta, com acesso a uma pequena varanda.

Então, o que conseguiste? – perguntou a Sousa, quando este se aproximou.

Aqueles dois amigos são, melhor dizendo, eram assistentes do Raul de Bragança, que os convocou para cá estarem às seis horas: o professor telefonara-lhes para lhes mostrar os resultados da pesquisa em que estava envolvido. Aquele ali – e apontou com a cabeça – chama-se Hilário de Poitiers, chegou primeiro, encontrou o corpo e ligou à Polícia. O outro chegou logo a seguir e Tadeu de Ortigueira. Não adiantaram nada de especial. A arma do crime ainda não foi encontrada.

Estamos mal, então! – comentou Daniel Falcão.

Parece que sim. Mas há pormenor curioso. Junto ao corpo, sobre a secretária, estava uma folha com estas palavras. E mostrou a folha.

“Te Deum”, hum. O que deverá significar? – interrogou-se.

Não fazem ideia do local onde o professor costumava esconder os seus documentos? – perguntou o inspector Sousa, dirigindo-se aos dois assistentes.

Hilário encolheu os ombros, enquanto Tadeu respondeu:

Espere lá. Por vezes, o professor colocava alguns papeis na parte superior da estante…

Ainda não tinha acabado a frase e já estava em cima da cadeira, esticando o braço e tacteando sobre a estante.

Está aqui qualquer coisa.

Agarrado na mão, trazia um corta-papéis ainda com vestígios de sangue, o qual entregou a um dos polícias. Em seguida, voltando a esticar o braço, retirou a capa contendo o já célebre estudo.

Enquanto isto, Daniel Falcão pegara num dos volumes que se encontravam no chão e folheava-o.

Sousa, vem cá. O que me dizes a isto? – perguntou ao amigo, apontando-lhe uma passagem do livro.

Agora olha em frente – e levantou a cabeça, acompanhado, no seu gesto, pelo inspector Sousa. Interessante…

Parece que temos o caso resolvido.

Tens razão…

Tudo indica que a dupla inspector Sousa e Daniel Falcão resolveu o caso.

 

Quem acha que assassinou, friamente, o professor Raul de Bragança? Justifique, o melhor possível, a sua opção.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 3 de Setembro de 1995 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2005