Autor Data 25 de Julho de 2021 Secção O Desafio dos Enigmas
[120] Competição Torneio
de Iniciação A. Raposo Prova nº 1 Publicação Audiência GP Grande Porto |
Solução de: A MORTE DANÇA O BOLERO A. Raposo Nota prévia: este problema foi-me
inspirado numa notícia que li sobre um caso sucedido há uns anos no Vaticano,
entre a guarda suíça, e que a revista “Pública” de 12-10-03 retratou… “Tornay foi encontrado morto, de barriga para baixo, com a
pistola debaixo do corpo depois de alegadamente se ter suicidado com um tiro
na boca. Uma posição insólita, já que quando dispara um tiro na boca, quando
o corpo cai por terra, cai costas! A menos que tivessem imobilizado o corpo e
depois disparado”. A partir desta ideia-base
construi o problema, aproveitando para lhe juntar uns ingredientes para
baralhar os solucionistas… Naquela vivenda, onde se
passa a ação, temos em simultâneo: 1 – O capitão Magalhães na
biblioteca, no 1º andar, preparando-se para tocar na sua aparelhagem um CD
com a gravação do célebre Bolero de Ravel; 2 – No rés-do-chão e ao
fundo da casa a cozinheira a tratar das panelas; 3 – No 2º andar e sobre a
biblioteca o sobrinho mais novo a navegar na Net; 4 – Na cave o sobrinho mais
velho a carpinteirar com uma alisadora elétrica; 5 – No jardim, no exterior,
o jardineiro a tratar das flores, mas sob a janela da biblioteca, a qual
sempre ficou semiaberta, ou melhor, semifechada, para quem prefira. A peça musical de Ravel tem
uma particularidade: tem a duração de 16 minutos, alguns segundos mais, mas
para chegar a ouvir-se a um nível que chegue às outras divisões da casa
precisa de uns 10 minutos, pois o som vai sempre em crescendo. A partir dos
12/14 minutos o ruído sonoro já será suscetível de chegar à cave. No entanto,
sabemos que o tiro foi ouvido pelo melómano jardineiro 15 minutos após o
início do disco, altura onde entram os pratos (címbalos). O sobrinho mais
novo não se apercebeu do tiro, só a criada notou um barulho esquisito, mas
não conseguiu decifrar. Todos eles ouviram o disco a tocar, sinal que a
música estaria suficientemente alta. Porém, o sobrinho da cave não se poderia
aperceber do início da música visto que ela só começa forte após uns dez
minutos. Estando na cave a utilizar uma alisadora elétrica, teria muita
dificuldade em ouvir a música e muito menos o tiro e o ruído de um corpo a
cair – a carpete espessa e dois andares abaixo não deixariam. Sendo o sobrinho mais velho
o único que entra na biblioteca após a morte do capitão e que sai fechando à
chave a porta, então precisamos de lhe atribuir também alguns outros dados
que o morto não poderia executar: 1 – Tirar o disco do
aparelho e colocá-lo junto à caixa sobre o gira-discos; 2 – A cápsula da bala não
poderia ter escorregado (rolando), dado que a carpete é espessa e faria a
travagem necessária; 3 – E por fim, tal como no
caso do Vaticano, um indivíduo em pé, ao dar um tiro na boca, cai para trás e
não fica com a arma sob o corpo, ao menos que alguém o agarre. O tiro foi
dado com a vítima de pé, como o comprova a bala incrustada na parede a um
metro e oitenta do chão. O normal seria, a haver suicídio, que o capitão
disparasse sentado. Resumindo: neste caso conclui-se facilmente que o capitão
foi morto e não se suicidou, e o assassino só poderia ser o seu sobrinho mais
velho. Quanto à herança, sucede
também um caso interessante. De acordo com o Código Civil (artigo 2166º), é
possível deserdar um filho da parte “legítima” a que teria direito desde que
se declare expressamente essa vontade e que se enquadre na especificidade da
alínea a) daquele artigo do código. Foi o que fez o capitão. Porém, decidiu
atribuir a totalidade da sua herança ao seu algoz. O mesmo código, no artigo
2034º, inibe aquele de ser herdeiro, provado o crime. Portanto, segue a
herança, na totalidade – a casa –, para o sobrinho mais novo! O móbil do crime: o
sobrinho mais velho quis abreviar o recebimento da herança, eliminando o tio.
Sabia que tinha o testamento a seu favor. E, como bónus, a parte da
“legítima” que não se pode deixar de dar a um filho, exceto naquele caso
previsto no Código Civil. O capitão não perdoou o filho e deserdou-o
completamente. Como se teria passado o
caso: o sobrinho mais velho apercebeu-se de que o tio iria ouvir música e
aproveitou-se do facto. Esperou até a música subir de tom o suficiente e, de
posse da pistola do tio, que ele saberia encontrar e que estaria operacional,
entrou na sala. O tio levantou-se do sofá
ao ver o sobrinho com a sua pistola. Este susteve-o com um braço e com o
outro enfiou-lhe a pistola na boca, disparando. O corpo caiu assim de bruços.
Entretanto deve ter dado sem querer um pontapé na cápsula, que a fez rolar
para debaixo do sofá. A seguir fez uma burrice: foi tirar o disco do aparelho
e colocá-lo junto à caixa vazia. Os assassinos fazem sempre uma asneira para
facilitar a vida aos investigadores… |
© DANIEL FALCÃO |
|
|
|