Autor Data 21 de Maio de 2006 Secção Policiário [775] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2005/2006 Prova nº 7 Publicação Público |
MEMÓRIAS DE TEMPICOS (FÉRIAS EM PARIS) A. Raposo & Lena Já lá vão mais de 30 anos,
é verdade, mas recordo com muita saudade. Eu e a Nelinha fomos a Paris, de
comboio, como dois pombinhos. A viagem era muito longa e maçadora. A esta
distância até nem me parece tanto. Daquela noite, às escuras, no comboio,
ainda hoje tenho nos lábios o gosto doce a rebuçados que fomos trincando a
meias. Tinham-me saído uns tostões
na Lotaria. Tirei uns dias de férias sem vencimento na PJ e lá fomos de
abalada. Ficámos numa pensão barata da rive-gauche,
comíamos pelos bistrots baratinhos, mas vimos tudo.
Paris estava a nossos pés. Recordo-me de uma tarde
passada no Louvre. Longas horas a coscuvilhar todas as salas. Naquela altura eu já teria
uns 40 anos e a Nelinha não mais de 20. Estávamos bem um para o outro. Eu já
tinha fama de malandreco,
ela a ingenuidade dos verdes anos. Subimos os degraus do
Louvre à descoberta da arte. Era grande a nossa sede de cultura. No topo da
escadaria, uma estátua enorme marcava a sua presença. Era em pedra, um corpo
de mulher esculpido e no lugar dos braços umas asas. O nome já não me ocorre,
mas sei que foi encontrada numa ilha do mar Egeu. Sei que não estou a fazer
confusão com a Vénus de Milo, esta última infelizmente foi motivo de
vandalismo, tendo-lhe um visitante quebrado os braços, inutilizando-a. Seguimos para ver a
pintura. Salas e mais salas, quadros e mais quadros, um festival para os
olhos. Aqui sucedeu um caso interessante. Ao verificarmos mais detalhadamente
um quadro da Idade Média, cujo autor já se me varreu, mas que retratava um
garoto descalço com um açafate contendo frutas e legumes, disse à Nelinha:
“Estás mais corada que os tomates do açafate.” Reconheço hoje que são coisas
que se digam às senhoras. Ela não achou grande piada. Como já estávamos com
alguma fome, resolvemos sair e viemos comer umas sandes sentados nos degraus
da entrada do museu, perto do local onde anos depois vieram semear uma
pirâmide em vidro que não casa muito bem com o estilo do edifício
circundante. Outros tempos, outros costumes. Meti a mão no bolso para
contar o que restava de francos. Nelinha, vendo as moedas, lembrou-se: “Olha,
tenho em casa uma moeda de prata muito bonita. O seu nome é thaler e é de 1780, de Maria Teresa de Áustria. Foi usada
em muitas áreas, África do Norte e Próximo Oriente.” Não só acreditei como lhe
contei a seguir a minha história de coleccionador. “Tenho uma moeda de baixo
valor facial, conhecido por ‘Marcelinho’. Um pobre tostão (X centavos) de
alumínio, de 1969. É um pouco maior que as suas congéneres da época. Porém,
deve-se ao facto de ser um ensaio. Assim sendo, esta moeda acabou por ser a
mais valiosa da minha pobre colecção.” A Nelinha pareceu também
não engolir a história, mas sorriu, condescendente. De repente, resolveu dar
uma corridinha pelo terreno circundante e colocar-se junto ao Arco do
Triunfo, que está ali mesmo ao pé. Tirei-lhe a foto que estava a pedir. É a
única que tenho da nossa viagem a Paris. Está ainda hoje no meu álbum das
fotos antigas e tem a legenda “1972. Arco do Triunfo. Jardim das Tulherias.
Após visita ao Louvre com a Nelinha”. Naquele fim de tarde ainda
arranjámos tempo para irmos até à Praça da Concórdia. No meio, um enorme
pilar de quatro faces, decorava o local, mandado colocar por Napoleão para
comemorar a vitória na batalha de Waterloo. No dia seguinte fomos ver a
obra de Toulouse-Lautrec noutro museu, onde vimos o
quadro da Jane Avril dançando. Ela estava para Lautrec como a Nelinha para mim, a expressão mais acabada
do ideal feminino. Depois veio o 25 de Abril de 1974 e a Revolução e perdi a
Nelinha. Ela foi atrás de alguém, mais vistoso e com farda. Nunca mais a vi. É a vida! Pergunta-se: qual era a
estátua que em vez de braços tinha asas? Existiram as moedas mencionadas? Há
mais alguma inverdade histórica no texto? |
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© DANIEL FALCÃO |
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