Autor Data 1 de Novembro de 2022 Secção O Desafio dos Enigmas
[151] Competição Torneio
"Solução à Vista!" – 2022 Prova nº 4 Publicação Audiência GP Grande Porto |
FADO DO LADRÃO ENAMORADO Bernie Leceiro Por
muitos ignorado, o cancioneiro português encerra verdadeiras pérolas da
criminologia nacional. É o caso da estória que vos vou contar e para a qual vos
desafio a descobrir a identidade do autor do roubo da ourivesaria da rua da
Paz. Estávamos
em plenos anos 80, tempos áureos da música pop rock
portuguesa. Nomes como Rui Veloso, Táxi, Jorge Palma, Luís Portugal ou UHF
davam voz a personagens e situações do quotidiano emergente. Eram tempos de
afirmação de uma geração que recuperava de 40 anos de ditadura, levando a
excessos em que raras vezes não terminavam no aljube da Praça da Batalha. Numa
típica manhã nublosa de fevereiro, a cidade acorda com a notícia que a
ourivesaria Paz da mesma artéria da invicta cidade do Porto fora assaltada. A
porta das traseiras foi arrombada e o cofre aberto durante a noite, com
recurso a explosivos. A fuga foi feita pelo mesmo local por onde entraram,
pelo quintal das traseiras com um acesso recôndito através da viela da
Carvalhosa. À
data Alves da Selva chamado ao local como inspetor estagiário apurou junto do
proprietário que do cofre “apenas” tinha sido furtada uma valiosa
gargantilha. Analisado minuciosamente o cenário do assalto, prevalecia no ar
o cheiro a dinamite misturado com o cheiro a madeira de mogno dos faustosos
expositores de joias. Atendendo aos ligeiros estragos provocados na porta e à
opção de entrada que apenas os moradores conheceriam, conclui que o assalto
terá sido levado a cabo por algum meliante da zona. Chamou-lhe ainda a
atenção um pequeno pedaço de tecido preso num prego na parede, onde o Sr.
Almerindo, proprietário da ourivesaria Paz e reconhecido sovina que
enriquecera à custa da desgraça dos outros, pendurava os penhores da malta
mais aflita. Uns fios de lã de cor preta, que cuidadosamente guardou num saco
plástico, conforme tinha visto num filme policial americano no cinema Águia
d’ Ouro, na expectativa que pertencessem ao vestuário do ladrão fugitivo. Num
famoso salão de jogos de Cedofeita, o Early Done bilharista, cruzavam-se alguns dos principais
suspeitos, Chico Fininho, Toni o Ás dos flippers, o
beto Dinis, Jeremias o fora da lei, Gastão o psicadélico desesperado e o não
menos famoso Nando o Mau da Fita, qualquer um deles conhecido de Alves da
Selva por pequenos delitos e confusões próprios de uma época em que se
recuperava a liberdade. Não tinha dúvidas que seria nesse palco de épicas
batalhas de bilhar e flippers, entre shots de
aguardente ABC e minis Cristal que encontraria o ladrãozeco
da joia. Na
manhã do domingo seguinte, Alves da Selva, cumprindo a sua obrigação de
devoto católico, foi à missa das 11:00 na igreja da Lapa, após a qual
comprava a regueifa para o almoço dominical em casa dos pais aproveitando,
como sempre, para lançar o seu charme e consolo a alguma viúva mais carente à
qual contava a bravura do povo tripeiro no apoio a D. Pedro IV. Nesse domingo
o seu olhar atento de lince predador não pode deixar de reparar numa rapariga
morena, sentada 2 bancos à frente do seu, de formas redondas e muito
atraente, vestida de modo modesto, que quando voltava da comunhão o ofuscou
com brilho do objeto, refletido pelas lâmpadas e velas que ardiam nos antigos
candelabros, no bico do seu provocante decote – uma bela gargantilha em nada
condizente com a condição modesta do seu vestuário. No final da missa, Alves
da Selva aguardou por ela no cimo das escadas da igreja e uma vez mais a
pretexto da vida heroica do rei liberal e a sua ligação à cidade, elogiou a
joia que a moça tão orgulhosamente trazia ao peito dizendo-lhe que nesse dia
até o coração de D. Pedro IV, envolto em formol na sua urna de prata que
repousa na igreja, bateu mais forte quando viu a formosura da bela rapariga e
a beleza da joia que ostentava, ao qual ela respondeu: “–
O meu coração já tem dono e isto é uma vulgar joia de imitação!” Alves
da Selva não tinha dúvidas, aquela era a joia roubada. Fácil foi obter a
informação sobre quem era o namorado. Pela troca de 2 cigarros RITZ que
restavam no maço de tabaco amarrotado no bolso do seu casaco domingueiro, o
sacristão da igreja cuspiu toda a informação que precisava para descobrir o
meliante. Para finalizar deixo aqui parte do seu depoimento que face às
evidências apresentadas fez questão de descontraidamente cantar uns versos de
Fernando Farinha: “Quis
brincar com o destino Convencido
que era forte E
ele pregou-me a partida De
ter de andar toda a vida Ao
desafio com a sorte; Iludido,
não sabia Que
a vida tem o seu perigo E
hoje triste, quem diria Já
não brinco com o destino Ele
é que brinca comigo” Caro
leitor, quem foi o autor do roubo da ourivesaria da rua da Paz? |
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© DANIEL FALCÃO |
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