Autor Data 6 de Julho de 2014 Secção Policiário [1196] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2014 Prova nº 6 (Parte I) Publicação Público |
A MILIONÉSIMA SEGUNDA NOITE Búfalos Associados Por
nada deste mundo o Inspector Garrett perdia os
serões de sábado à noite em casa da Tia Laurinda. As reuniões do grupo de
amigos a que ela com ironia chamava de "Os Patuscos" proporcionavam
sempre bons momentos e o Patranhas aparecera naquela noite com uma revelação
extraordinária. -"Calculem que quando andava a limpar
a casa que foi dos meus avós encontrei no meio dos livros da estante um
documento incrível que pode muito bem vir a alterar a história da literatura
mundial. Conseguem imaginar que "As mil e uma noites" que nós
conhecemos podem não terminar como julgamos? Toda a gente conhece o final em
que o Rei Xahriar acaba por perdoar a Xerazade,
encantado com as histórias que ela foi contando, noite após noite, deixando
habilidosamente o final para a noite seguinte. Ela impedia assim que ele de
manhã mandasse cortar-lhe a cabeça, como havia feito a todas as anteriores
noivas, após terem dormido com ele apenas uma vez. Pois bem, encontrei um
texto que parece ter sido recolhido no século XVI por um antepassado meu que
assinava Padre Dâmaso e que viajou muito pelo Oriente. Nele se relata o que
se terá passado numa milionésima segunda noite que não consta de nenhuma
versão conhecida, e no fim da qual o Rei Xahriar
mandou mesmo matar Xerazade." -"Como é isso possível? - interrompeu Garrett - A característica fundamental da obra
é a de poupar a vida de Xerazade, o que é considerado uma homenagem à irresistibilidade feminina que
cativa o Rei e o faz desistir da sua lei cruel." -"Pois, mas vejam esta descoberta que
me veio parar às mãos. Numa gaveta cheia de papelada velha encontrei esta
relíquia, uma carta assinada por um tal Padre Dâmaso datada de Patriarcado de
Lisboa, 10 de Outubro de 1582, a qual acompanhava um antigo documento escrito
em árabe, que esse meu antepassado dizia na carta ter encontrado uns tempos
antes em Samarcanda, numa das suas viagens. Claro que já mandei traduzir o
escrito para português e vou ler-vos o seu conteúdo: "Na milionésima segunda noite o Rei Xahriar disse a Xerazade que estava rendido ao seu
talento de contar histórias e disposto a poupar-lhe a vida, mas para tal ela
teria de solucionar um enigma que lhe passava a propor: "Um poderoso Sultão tinha uma bela
filha em idade de casar. Sabendo haver três pretendentes, Ibrahim,
Abul e Hassan, interrogou a filha para saber qual
deles era o preferido, ao que ela respondeu manifestando o desejo de casar
com alguém verdadeiramente inteligente e corajoso. Caso o não fosse, melhor
fora ser punido com a morte, como castigo pela ousadia de a requestar. Como
era voz corrente serem os três muito inteligentes, decidiu o Sultão
submetê-los a uma prova decisiva. Numa sala de onde mandou retirar todos os
espelhos, colocou os jovens em triângulo e mostrou-lhes cinco pequenos
solidéus, três de cor preta e dois de cor branca, à medida que os introduzia
num saco. Passando depois por detrás deles, tirou à vez um solidéu do saco e
colocou-o sobre a cabeça de cada um, sem que o próprio pudesse ver a cor.
Dentro do saco sobraram dois solidéus cuja cor eles ignoravam. Cada um podia
assim ver os dois solidéus nas cabeças dos outros, mas não o próprio. E
disse-lhes que daria a filha em casamento àquele que primeiro descobrisse a
cor do seu solidéu, explicasse como havia chegado a essa conclusão, e
preveniu-os de que a inteligência e a coragem demonstradas seriam decisivas.
Passou algum tempo de silêncio. Todos hesitavam. O Sultão não garantira a
equidade e eles desconfiavam da sua imparcialidade. Mas corajosos decidiram continuar.
Às tantas, rompendo o silêncio, Ibrahim declarou
desistir. Passou mais algum tempo e Abul disse
desistir também. Foi então que Hassan acertou na cor do seu solidéu e disse o
porquê. De resto cada um explicou o porquê da sua decisão e manifestou a convicção
de que a sua resposta tinha sido a mais inteligente em cada ocasião. Mas tal
não foi a opinião do Sultão que, satisfazendo o desejo da filha, mandou
executar os três jovens e explicou a razão porque
qualquer deles podia ter sido mais inteligente." "Agora Xerazade,
disse o Rei, tens de me responder correctamente a
quatro questões: como foi que se justificou cada um dos três pretendentes, e
qual foi a explicação que o Sultão deu para a sua decisão final?"
Xerazade, que tinha encantado o Rei Xahriar com a
sua arte de contar histórias, não foi capaz de encontrar uma resposta
convincente e na manhã seguinte foi executada, seguindo o exemplo das
anteriores noivas do Rei." -"Caramba, que final cruel! - exclamou Garrett - E a história acaba assim? Nem uma
resposta às quatro questões do Rei Xahriar?" -"Não,
mais nada. - disse o Patranhas - Procurem vocês as
respostas." -"Tem graça, isto lembra um problema
de raciocínio lógico há muito conhecido. - lembrou o
Piquínhas - Não custa a crer que a origem possa vir
do Oriente, só que essa carta do Padre Dâmaso é muito duvidosa." Todos
ficaram a pensar na resposta às questões presentes na história e o curioso é
que foi a Tia Laurinda quem primeiro encontrou uma solução correcta. Quem quer imitá-la? |
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© DANIEL FALCÃO |
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