Autor Data 2 de Agosto de 2015 Secção Policiário [1252] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2015 Prova nº 7 (Parte I) Publicação Público |
SANGRIA DESATADA Búfalos Associados A
vida do arquitecto Bairrada não se conta em duas
palavras. Quando, terminado o curso, decidiu ausentar-se do país para não
cumprir o serviço militar, pois era contrário à guerra colonial que
entretanto começara em Angola, a sorte sorriu-lhe. Passando fronteiras e
agruras, foi viver para a Suíça, onde já trabalhava um tio que o orientou
numa carreira que em breve correria sobre rodas. Através da importante
empresa onde trabalhou, dirigiu a equipa que construiu o pavilhão da Suíça na
Expo70, em Osaka no Japão, e nunca mais esqueceu o
ano da sua grande arrancada para o sucesso.
O
Japão, onde se deslocava com frequência no cumprimento da profissão, exerceu
sobre ele um irresistível fascínio. O pavilhão da Suíça na Expo foi um enorme
êxito e os convites não tardaram. Foi viver para o Japão, e em poucos anos um
país nessa época em franco desenvolvimento tornou-o arquitecto
afamado e senhor de uma bela fortuna. Bairrada disse sempre que a sua grande
paixão era o Japão, a sua cultura, as paisagens e a simpatia dos seus
habitantes. Mandou vir da Suiça a senhora com quem
entretanto casara e de quem viria a ter um único filho, o Alvarinho, já
nascido no Japão. O rapaz partilhou sempre com o pai o amor pelo Japão e pela
sua civilização, foi lá que estudou e fez um curso de engenharia. Já
retirado, Bairrada enviuvou e teve de regressar a Portugal para resolver
problemas de heranças da mulher. Foi viver numa moradia no Estoril e
Alvarinho acompanhou o pai, embora contrariado. As relações entre os dois
deterioraram-se bastante e entretanto o pai começou a dar sinais de sofrer de
perturbações mentais. Alvarinho receava ser prejudicado no testamento do pai,
e mantinha-se atento porque sabia que o pai guardava uma enorme fortuna em
ouro, jóias e dinheiro num cofre de que só ele
sabia o segredo. Depois de reformado, o homem que sempre tinha sido afável e
generoso, tornou-se agressivo, chegando mesmo a agredir o pessoal que só o
suportava por interesse. Queixava-se de todos e dizia que estava a gastar o
que podia da fortuna e iria suicidar-se só para lixá-los. No
Estoril a moradia tinha no rés-do-chão um grande hall
(que comunicava com o piso dos quartos por uma vasta escadaria), um salão, a
sala de jantar, a cozinha, sanitários e os alojamentos do pessoal: o mordomo,
Palmela de seu nome, a cozinheira Ermelinda, e um criado chamado Borba. No
piso de cima ficavam os quartos do pai e do filho, com as respectivas
casas de banho privativas, e um escritório. Era no quarto que o Bairrada
guardava o tal cofre onde toda a gente sabia haver importantes riquezas. Foi
numa manhã de domingo que a tragédia estalou naquela casa. O mordomo, que
tinha ido ficar nessa noite em casa de uns primos, regressou pelas sete e
meia da manhã e estranhou que a porta da rua não estivesse fechada com quatro
voltas como todos a deixavam sempre de noite. Ao entrar foi surpreendido por
uma torrente de água misturada com sangue que corria em cascata pela
escadaria abaixo. À polícia declarou: -"Alarmado, deixei a porta da rua
aberta e subi pela escada acima, chapinhando na água que vinha da casa de
banho do sr. arquitecto.
As portas estavam abertas de par em par e ele jazia morto, despido, com a
cabeça completamente submersa na banheira, com a água quente continuamente a
correr e a transbordar, misturada com sangue que era bem visível ter tido
origem em cortes em ambos os pulsos. Gritei várias vezes a chamar pelo sr. engenheiro, mas ninguém me
respondeu. Percebi então que não estava mais ninguém em casa, não toquei em
nada, só fechei as torneiras da água e desci para chamar a polícia do
telefone da cozinha". Dos
apontamentos da polícia retiremos as notas essenciais: 1-
A cozinheira e o Borba não ficaram em casa naquela noite pois, como sempre
acontecia, no domingo estavam de folga e tinham-se ausentado depois do jantar
de sábado em que só serviram o sr. arquitecto. O mordomo também
saiu por essa altura. Alibis confirmados pelas famílias. 2-
A autópsia confirmou a morte entre as cinco e as seis da manhã, por enorme
perda de sangue, mostrando não ter chegado a haver afogamento. Mergulhado na
banheira foi encontrado um afiado "x-acto". 3-
Entre o "lago" da água proveniente do andar de cima e a porta da
rua, eram visíveis pegadas de um par de sapatos de homem na direcção da saída, as quais aliás o mordomo confirmou ter
visto ao entrar de manhã. Continuavam no exterior e perdiam-se na relva. 4-
O Alvarinho chegou ao meio-dia e ao princípio disse que não podia declarar
onde passara a noite para não prejudicar a reputação de uma senhora casada e
de alta posição mas, confrontado com a gravidade da situação, acabou por
dizer. A senhora mais tarde interrogada, após muitas hesitações, pediu
rigorosa discrição e declarou ter estado com ele até às seis horas da manhã. 5-
No quarto do arquitecto foi encontrada uma folha A4
escrita à mão: "deixo esta vida e não levo saudades vossas quem for
esperto encontrará no cofre tudo o que tenho a chave está lá o segredo é à
esquerda o de cima para cima e em baixo sobe um depois em cima desce um e os
quatro de baixo sobem depois em cima desce um e em baixo só sobem dois depois
só em baixo sobem quatro em cima nada desce". No quarto havia sinais de
que alguém com sapatos molhados andara por ali. 6-
O cofre estava aberto e vazio. O segredo tinha ainda registados os quatro
dígitos que permitiam a abertura. A chave estava na fechadura. Constava que o
arquitecto tinha feito recentemente um testamento
em que deixava grande parte da fortuna aos bombeiros. 7-
Impressões digitais só dos habitantes da casa. Foi perguntado a todos se
tinham ideia do segredo do cofre, mas sem resultado. Palmela falou na
possibilidade de uma data importante. O
inspector Garrett gostava muito de contar esta
história que ele considerava um teste à argúcia e aos conhecimentos dos seus
alunos. Aqui fica o desafio: como se terão passado as coisas e como foi que o
cofre apareceu aberto? |
|
© DANIEL FALCÃO |
||
|
|