Autor Data 21 de Agosto de 2016 Secção Policiário [1307] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2016 Prova nº 6 (Parte I) Publicação Público |
Solução de: UMA TRAGÉDIA FAMILIAR Búfalos Associados "Ana
pôs-se a caminhar ao longo do cais. (...) Num passo rápido e ligeiro,
postou-se junto da via, e olhou a parte inferior do combóio que roçava por ela,
as correntes, os eixos, as grandes rodas de ferro fundido, procurando medir
com o olhar a distância que separava as rodas da frente das de trás. (...)
Encolheu a cabeça entre os ombros e, com as mãos para a frente, atirou-se de
joelhos para debaixo do vagão. Teve tempo de sentir medo. (...) Mas uma massa
enorme, inflexível, bateu-lhe na cabeça e arrastou-a. "Senhor,
perdoai-me!", murmurou ela, sentindo a inutilidade da luta. E a luz que
para a infortunada iluminara o livro da vida, com os seus tormentos, as suas
traições e as suas dores, brilhou de súbito com um esplendor mais vivo,
depois crepitou, vacilou e extinguiu-se para sempre." Garrett
voltava a ler as palavras da passagem do romance "Ana Karenina" de
Leão Tolstoi em que a protagonista, num gesto desesperado, se atira para
debaixo de um combóio e põe termo à vida. E pensava se teriam sido
semelhantes os últimos segundos de sua trisavó Carolina quando desapareceu
deste mundo. Na verdade nunca foram apresentadas em tribunal provas
consistentes contra ninguém e a tese de suicídio foi a conclusão. O próprio
Garrett, tantos anos depois não podia concluir outra coisa. A verdade é que a
história da trisavó Carolina sempre o impressionara pelas semelhanças com o
romance: uma mulher na força da vida que não resiste à indiferença de dois
homens que amara, o marido e um jovem oficial de cavalaria, e desaparece
inglória e tragicamente. "Até prova cabal em contrário, ninguém poderá
afirmar que Carolina não se terá suicidado", concluiu. Alguém
contestou: -"Mas as justificações que o Leopoldo terá apresentado para
manifestar a sua inocência estavam recheadas de falsidades. Isso não pode ser
suficiente para o incriminar? Na verdade, se os acontecimentos tiveram lugar
em 1900, ano em que, de facto, morreram Eça de Queiroz e António Nobre, já a
inauguração da Torre Eiffel não foi durante a Exposição Universal desse ano,
mas sim durante a de 1889, acontecimento que celebrara o centenário da
Revolução Francesa. E mais: o ano de 1900 não foi bissexto, razão pela qual o
Leopoldo não podia ter embarcado no dia 29 de Fevereiro." E
Garrett esclareceu: "Essas declarações não terão sido produzidas em
tribunal, mas sim bastantes anos depois em conversas familiares. De resto
nunca as ouvi, vieram até mim por relatos indirectos. E penso que talvez o
meu perturbado trisavô, já numa idade avançada, tenha feito tais confusões na
ânsia desesperada de se justificar. A mais perturbante confusão seria a de
julgar bissexto o ano de 1900, uma vez que 1896 e 1904 o foram. O que
acontece é que o calendário gregoriano alterou a regra dos anos bissextos
serem de quatro em quatro anos para acertar a duração média dos anos, e
deixou de ser bissexto o último ano de cada século cujo número de centenas
não fosse múltiplo de quatro. Por isso 1900 não foi bissexto. Isso e a
confusão com a Torre Eiffel, não creio que sejam factos suficientes para
acusar o Leopoldo de homicídio. De falta de memória, talvez. E para ele
talvez tenha sido castigo suficiente ter continuado a viver sem saber se a
criança que nascera era seu filho ou do Adérito... Toda a descendência vive
até hoje nessa dúvida, incluindo a tia Laurinda e eu. De qualquer modo
recomendo sempre a leitura de "Ana Karenina", que é uma verdadeira
lição de vida. Aí, sabe-se que o filho que nasce não é do marido..." Alguém disse: -"E já
que se falou do Adérito. Será credível ele ter ido a Tomar comer
lampreia?" -"Claro que é, (respondeu Garrett) o rio Nabão é rico em
lampreia, um apreciado ciclóstomo que é uma das iguarias que se comem na
cidade de Tomar, de Janeiro a Março, a época apropriada. Falo por experiência
própria." |
© DANIEL FALCÃO |
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