Autor

Cardilio & Avita

 

Data

1 de Agosto de 2010

 

Secção

Policiário [993]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2010

Prova nº 8 (Parte I)

 

Publicação

Público

 

 

LECY ONARA

Cardilio & Avita

 

A – …Então, vizinha, não sabe o que dizem por aí?

B – Não, não ouvi dizer nada.

A – Pois, olhe, dizem que, afinal, a professora encontrada morta, ali no rio, há três semanas, não se matou. Parece que foi um bicho, uma mosca ou lá o que foi, que a picou, envenenou-lhe o sangue, fê-la cair ao rio e afogar-se.

B – Coitadinha!... O que disseram dela na altura!... Mas eu sempre disse que a senhora não ia fazer uma coisa daquelas.

A – Ora, ora. Isto… quem vê caras, não vê corações. O que é certo é que ela tinha uma vida muito complicada.

B – É verdade, veio a senhora de tão longe, lá da Itália, para vir aturar o que aturou aqui.

Nota 1. Na quarta-feira, dia 18 de Março de 2009, Lecy Onara, italiana de Tombolo, professora de latim na Escola Secundária de Torres Novas, foi encontrada submersa e retirada já sem vida das águas do Almonda, numa curva do rio em que este mais se aproxima da rua de Trás-os-Muros, junto ao Castelo. Fora vista, na sexta-feira anterior, depois das aulas, no supermercado. A vítima, já instalada nesta cidade, conheceu Namet Oques, com quem vivia maritalmente.

A – A começar pelo marido, já sabemos. Dizem que ele para além de não chegar lá… ainda lhe dava maus-tratos. A mim não me enganou ele. Assim que o vi, tirei-lhe logo o retrato. Não podia nada ser boa rês. O que é que o Francês achou nisto, para se vir aqui enfiar?

B – Eu cá não sei nada, mas o homem até era muito delicado para toda a gente. Tinha uns modos a que não estávamos habituados, é verdade, mas no fundo parecia ser boa pessoa. Parece que quem lhe falou nisto aqui foi um tal Alberto, que fazia versos, com quem viveu algum tempo em Bruxelas. Quando eu ia ao Castelo, via-o sempre por lá. Gostava muito das flores e do serpentear do rio pela cidade, por onde dava grandes passeios a pé, apesar de sofrer do coração. Dizem mesmo que conhecia melhor o rio do que as palmas das próprias mãos.

Nota 2. Namet Oques, esteta, dramaturgo e ensaísta, era um apaixonado por Portugal e por portugueses. Apreciava o bacalhau, gostava do fado, das corridas à portuguesa e dos forcados em especial. No dia 13, de manhã, partiu para um fim-de-semana em Paris, tendo regressado na noite de segunda-feira, 16. Ficou surpreendido por Lecy não estar em casa e ter deixado o Wooggy – o cão de que tanto gostava – sem comida nem água. A casa estava num nojo. No dia seguinte, como a mulher não aparecesse, Namet foi à polícia participar o seu desaparecimento. Não podia usar telemóvel por causa do coração.

A – Com quem se dava muito bem, unha com carne, era com o Tó Trinete.

B – Credo. Esse não é esquisito, qualquer moeda lhe serve. Pelo menos é o que dizem.

Nota 3.Tó Trinete, mecânico de profissão, proprietário da oficina Sossu Kata, era um exímio piloto de motas, já com muitos troféus conquistados com a sua Vaide Pressa, uma maravilha da engenharia, saída da sua oficina. Afirmou que, na manhã de terça-feira 17, Lecy lhe entregou o carro para revisão, tendo ficado combinado que viria buscá-lo ao fim da tarde, mas ela não apareceu nem nunca mais a viu, pelo que o carro ficou à sua espera.

A – Quem não ganhou nada com isto foi o outro, o estrangeiro que era colega dela na escola. Logo que lhe cheirou a esturro, pôs-se ao fresco daqui para fora.

B – Esse também não me enganou. Veja lá, não largava a senhora, sem se preocupar com o falatório que por aí corria acerca disso. Pelo menos, foi o que me disseram há tempos.

Nota 4. Musk Uloso era colega da falecida. Professor de desporto na mesma escola, mantinha uma massa muscular bem tratada e invejável ainda para uma pessoa da sua idade. Foi detido pela polícia em Paris quando, de regresso à sua Ilha, naquela sexta-feira, ao princípio da noite, se preparava para apanhar o voo de ligação para o Dubai. Disse logo ali que, se era por causa da morte da Lecy, não tinha nada que ver com isso e mostrou uma carta que ela lhe tinha escrito, na qual explicava as razões por que decidira pôr termo à vida.

A – Quem conhecia bem este fulano era o Zé Galão, que também é um bom figurão. De manhã, antes das aulas, esta gente juntava-se na sua pastelaria para tomar o pequeno-almoço.

B – Sim. Às vezes, era tão bruto no que lhe dizia que até vinham as lágrimas aos olhos da coitada da senhora. Pelo menos, foi isso que espalhou por aí o Zé Galão, que, diga-se de passagem, é pessoa que não interessa.

Nota 5. Zé Galão é uma figura típica da cidade. Na sua pastelaria junta-se gente de todas as origens e condições. De manhã, antes das aulas, entre outros clientes, chegavam os dois professores e, às vezes, o tipo era tão bruto que até incomodava quem assistia. Noutro dia, ouviu-lhe dizer: “Não volto a dizer-te isso! Tens de escolher, ou ele ou eu”. A professora Lecy ficou tão aparvalhada que lhe vieram as lágrimas aos olhos. À tarde vinha o outro par. O Tó, para o petisco, e o Namet, para o chá ou iogurte.

A – Sabe que mais, vizinha? Coitado de quem morre, seja lá do que for.

B – Sim, sim. Mas, com a crise que para aí vai, não tarda que seja coitado de quem cá fica.

Nota 6. A investigação foi célere e eficaz:

1 – Uma testemunha afirmou que lhe pareceu ter visto Lecy no dia 17, à tardinha, no seu carro, passar na zona da escola, não obstante ter faltado às aulas de segunda e terça-feira.

2 – A carteira da vítima foi encontrado nas imediações do local onde o corpo foi descoberto, tendo no seu interior uma carta de despedida dactilografada e uma embalagem vazia de comprimidos digoxina.

3 – O corpo de Lecy apresentava um hematoma numa têmpora e o nariz em muito mau estado, coberto com uma grande postela de sangue. Internamente, no corpo, não se detectaram vestígios de drogas nem água do rio.

4 – Especialistas da Universidade de Coimbra identificaram como terceiro ínstar de Calliphora vicina, a espécie de grânulos esbranquiçados recolhidos internamente nas narinas da vítima.

5 – Mais tarde, técnicas sofisticadas permitiram atribuir a origem de tais grânulos ao corpo emurchecido encontrado no habitáculo do carro de Lecy Onara.

A – O que mais me incomoda nisto tudo é que já lá vai tanto tempo e ainda não descobriram o que se passou.

B – Tenha calma, pois, se é como dizem, não tarda que no policiário ponham a coisa a nu.

A – Credo, vizinha! Que maneira de falar destas coisas…

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO