Autor Data 25 de Janeiro de 2009 Secção Policiário [914] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2008/2009 Prova nº 4 Publicação Público |
A CATÁSTROFE Carla Colchete –
Ora boa tarde. –
Boa tarde. –
Se aqui vendem selos, também devem comprar, não é? –
Compramos sim, senhor. –
Tenho aqui uns, do tempo dos reis… Que é que acha? Valem alguma coisa? –
Valem, valem sempre. Se é muito ou pouco, mostro-lhe já no Catálogo, mas não
se fie muito nos preços, nós estamos a vender por metade do que aí está… Ora
bem, o que é que tem aí? D. Luís carmim, lilás, verde… Só tem D. Luís, não
é?… Cá está: estes valem, teoricamente, 36 euros cada… quando aparecem assim
aos pares valem 108 euros… –
Cada? –
Não, o par. Está a ver este símbolo? O meu miúdo diz que é da batalha naval…
Quer dizer que dois selos ligados valem cerca de três vezes mais do que um
sozinho. –
E esse sinal aí? –
É quando são quatro: valem cerca de oito vezes mais do que só um… mas, vendo
bem, é só o dobro, porque são quatro selos, não é? Com o envelope ou o postal
original é que o valor do selo aumenta para o quádruplo… –
Para o quádruplo? Boooh! E estive eu toda a manhã a
cortar selos dos envelopes… Menos neste… –
Dois D. Luís carmim? São
dos que valem menos. Olhe: perdeu o senhor e perdi eu. Mas é a ordem natural
das coisas: o mais importante é sempre o que não sabemos. –
E a seguir vai dizer-me que as cartas também valem dinheiro, não é? –
Quando diz cartas refere-se a… –
A correspondência, ao que estava dentro dos envelopes… –
Depende… –
Depende de quê? –
Olhe, de quem escreve, de quem recebe, do que nelas se diz… já tenho comprado
algumas mais caras do que os selos… não me diga que… –
Nem me fale. Até já estou a ficar mal disposto. Queimei-as todas… menos a do
que lhe mostrei, em que trouxe os selos… escolhi-o porque era o maior e tinha
um timbre… ´tá a ver? Consulado português de Newcastle… –
Dá-me licença que a leia? –
Faça favor… eu não percebi nada dos gatafunhos. –
“Newcastle, 10 de Dezembro de 1878”… É dirigida a um “Meu caro Vaz”… Tem
ideia de quem seja? –
Não sei, um antepassado qualquer da minha mulher… ela é que é Vaz, pelo lado
da mãe, e as cartas e os papéis estavam no cofre da avó dela… E nesse
envelope só consegui perceber isso: “Vaz”. “Como
estipulado, aqui lhe mando a versão… i… irredutível que tanto o exasperou. Confio
que, não tendo eu seguido o seu conselho de me aquecer com essas folhas, não
as faça chegar à sua lareira em meu lugar – pelo menos, não antes de o Senhor
Ministro lho determinar.» Se,
como julga, não puder obter o … Nibil…
não, o Nihil Obstat, à sua
publicação, conto que o Ministério tenha a grandeza de, proibindo-me a mim
como Carlos X proibiu Victor Hugo, me pagar esta Batalha perdida, como o rei
pagou ‘Marion Delorme’.
Enfim, não como se paga em França, mas em trocos, como se paga em Portugal. Um
abraço do seu agora devedor José Maria.” –
Acha que vale alguma coisa? –
Nem imagina… e o livro a que a carta se refere? –
Livro? Não havia livro nenhum. Havia um maço de folhas manuscritas, já
borratadas, atadas com um cordel. Mas estavam coladas umas às outras,
bolorentas, com os cantos negros… Foram as primeiras a ir para a lareira – e
olhe que custaram a arder… Era uma coisa de guerra, uma batalha qualquer… –
A Batalha do Caia. –
Isso mesmo… Espere aí: como é que sabe? A
pergunta é exactamente essa: como é que ele sabia?
E sabendo ele isso, como é que sabemos nós que a autora quis que a história
se revelasse como uma efabulação e não como um relato presenciado de uma
realidade irónica (como a realidade sempre é)? O que é que falha? |
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© DANIEL FALCÃO |
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