Autor

Cobalt 60

 

Data

1 de Julho de 1984

 

Secção

Mistério... Policiário [425]

 

Competição

Torneio “Dos Reis ao S. Pedro” - 84

Problema nº 7

 

Publicação

Mundo de Aventuras [530]

 

 

A MENTIRA

Cobalt 60

 

1

A noite estava tão quente que o sr. Armando H. resolveu sentar-se um pouco na varanda. Na companhia de um bom livro de Georges Simenon e de um refresco de ananás, instalou-se na sua cadeira de encosto e preparou-se para passar um bom momento. A lua estava bela e a noite era clara, de modo que podia ver distintamente toda a rua, as casas da vila e os montes que a rodeavam. O rio reflectia aquela luminosidade e parecia mais lindo do que nunca. De súbito, um movimento brusco sobressaltou-o… Naquele momento, não deu conta do que seria, apenas sentiu qualquer coisa de anormal na calma da noite… Mas depois viu:

Mesmo em frente da sua casa morava “Monsieur” D., um velho francês, de quem se dizia ter uma bela fortuna. Pois foi da janela iluminada da casa em frente que veio o movimento que o sobressaltou. Apenas distinguia dois vultos que, estranhamente agitados, pareciam discutir. Na altura, o Sr. Armando pensou, divertido, que aquilo bem podia ser um “écran” de cinema e que as silhuetas representavam uma peça só para ele. Mas depois reflectiu que era bem mais grave. Eles levantavam os braços, abanavam a cabeça, e as vozes estavam certamente alteradas com a discussão. Aconteceu então qualquer coisa de que não tomou consciência imediatamente. O braço de um dos homens (pois tinha a certeza de que eram 2 homens) abateu-se sobre o outro, que tombou… Depois, uma espera interminável, a luz que se apaga e um silêncio opressivo… O Sr. Armando H. estaria pronto a esquecer o incidente e a atribuí-lo à sua imaginação se não tivesse saído alguém da casa do seu vizinho. Conseguiu distinguir a figura magra de um homem que, rapidamente, se afastou… Antes de virar a esquina, com um gesto furtivo, deitou qualquer coisa numa lata de lixo que ali havia.

Foi nessa altura que, mais alarmado, o Sr. Armando H. resolveu chamar a Polícia… Eram 2 horas da madrugada.

2

“Monsieur” D. estava morto, com a cabeça esmagada por um pesado castiçal. Os papéis da sua secretária estavam remexidos e havia um pequeno cofre aberto no chão. A alcatifa tinha agora uma imensa mancha de sangue no local onde caíra, já morto, “Monsieur” D. Não havia dentro de casa nada que pudesse indicar quem era o assassino.

Mas o depoimento do Sr. Armando H. deitou uma luz sobre o caso. Na lata de lixo indicada por ele encontraram um par de luvas novas, o que explicava a ausência de impressões digitais estranhas no castiçal; este era de prata, maciço, e pertencia ao próprio morto. As investigações levaram a concluir que tinha sido roubada uma boa quantia em notas de banco francesas. A Polícia investigou nos bancos… Descobriram que, numa agência da cidade vizinha, tinham sido cambiados cerca de 4000 francos franceses por uma jovem… As luvas conduziram a outra pessoa: tinham sido compradas uma semana antes, na mesma cidade, por um rapaz que, soube-se depois, era afilhado do morto…

O rapaz estava agora detido há 2 dias, e continuava a desmentir que matara o padrinho. As luvas, tinha-as perdido no dia anterior ao do crime, e alguém as achara e resolvera aproveitá-las, dizia ele. Na sua versão, naquele dia não tinha visto o padrinho nem estado em sua casa. Vários amigos confirmaram a sua história. O Sr. Armando H., embora admitisse que a silhueta do rapaz podia ser a do criminoso, não o podia garantir.

Carlos estava a contar a história pela quarta vez (creio que ainda não disse que Carlos era o nome do jovem afilhado de “Monsieur” D.) quando a notícia chegou: a rapariga que cambiara os francos confessou que tinha sido o rapaz que lhe pedira para o fazer. Ele dissera-lhe que não os trocava na vila pois não queria que soubessem que andava com aquele dinheiro. A sua justificação: foi um amigo emigrante que o deixou para fazer uns pagamentos. Ele tinha de partir rapidamente para França, e deixou o dinheiro ao Carlos, com uma pequena gratificação, para ele se encarregar do assunto. Esta história não se aguentou… Contactado pela polícia, o tal amigo emigrante não a confirmou. Na noite de quarta-feira Carlos confessou o seu crime.

3

O inspector tinha a mão no ombro do rapaz.

“Eu fui a casa do meu padrinho por volta da meia-noite. O senhor sabe, já não era a primeira vez que eu lá ia pedir dinheiro. Mas ele… É sempre assim, nunca me quis ajudar. Com aquele sotaque horrível – é curioso, toda a gente o achava engraçado – ele disse-me o que sempre dizia… Que eu era um inútil; que se servisse para alguma coisa já tinha arranjado emprego. Vê-se bem que ele não precisava de arranjar trabalho, não sabia do que estava a falar. Naquela noite ele estava com uma camisa vermelha. Não sei porquê, aquilo deixou-me nervoso… E também a decoração da casa, o senhor deve ter visto. Aquelas estátuas horríveis, aquelas pinturas macabras… Sempre pensei que os franceses eram alegres, até conhecer o meu padrinho. Não sei como o meu pai pôde gostar dele.

Enfim, riu-se de mim, chamou-me uma data de nomes na língua dele. Não entendi nada, está claro. Não sei porque me odiava tanto, afinal eu não lhe fiz nada, nunca. Só ia lá de vez em quando pedir dinheiro, que aliás ele nunca me dava…

Mas aquela atmosfera… A atitude dele… Enervei-me, sabe? Acabei por perder a cabeça. Estávamos a falar tão alto que não sei como os vizinhos não ouviram… Eu… Foi mesmo assim, perdi a cabeça, não sabia o que estava a fazer… O castiçal estava ali… Ainda agora me parece um sonho. Peguei naquilo e bati-lhe… Pode acreditar que fiquei surpreendido com o sangue. Mas depois… Bem, resolvi aproveitar… Procurei o dinheiro. Infelizmente, não encontrei senão francos… Tive de levar aquilo, eu precisava muito. E pronto…

 

O Inspector saiu, pensativo. Apesar de tudo, gostava do moço. No fundo, ele não beneficiara com o crime, pelo contrário. E o velho merecia um castigo… Não aquele, claro, mas merecia. Então… Porque não deixar passar a mentira do rapaz? Pelo menos por agora…

– Sargento, pode levar a confissão – disse ele. – Está tudo em ordem.

 

Pergunta-se:

1) Qual a mentira do rapaz?

2) Justifique a sua opinião.

 

SOLUÇÃO (não publicada)

© DANIEL FALCÃO