Autor Data 31 de Maio de 1979 Secção Mistério... Policiário [219] Competição Torneio
“Detective Misterioso" Problema nº 7 Publicação Mundo de Aventuras [295] |
NÃO SE LAVA UM CRIME… Constantino Enorme,
negra, disforme, a sombra avança… Todos
os dias invariavelmente a esta mesma hora, um arrastar pavoroso, portas
abertas, desmedidas, ruidosamente impelidas numa troada horripilante… depois
a sombra tenebrosa… O
gargalhar… Éh!... Éh!... Éééé!!... Adivinho
antes de o ver, o títere giganteu. Martelar
de passos pesados, pés agigantados revestidos de couro enodoado… estrebuchamento,
gargalhadas arfantes… Gargalhadas
atiradas de um buraco elipsoidal achatado, abismal, cordilheiras de montes
brancos, sujos. Assobios que se manifestam, endoidecendo-me, em sons
alternos, desordenados, que me desconcertam em delírio constante… Um
vómito de susto sobe-me do peito e prende-se-me na garganta. A apreensão
paralisa-me os movimentos. Alucinação… A
sombra adensa-se, materializa-se… A
monstruosidade, o assombro, aquela coisa brutal, implacável, baixa-se. No
rosto orbicular dois olhos amendoados, negros, lucíferos, desmesurados, um apêndice
em cunha resfolega estrepitoso. Barba de pelagem espesso, ferrogínea,
no centro da qual, cilindriforme e branco, algo fumega em nuvens pardacentas.
Estende
o punho grosso de cinco encabelados, dígitos rematados por unhas ovoides.
Abre a porta da minha estreita cela procurando tocar-me. As
casquinadas avolumam-se, estridentes… Éh!... Éh!... Éééé!!... Encolho-me
ante o tenebroso, fraco, em pânico. Aquelas
unhas estendidas são ameaça. Prontas a dilacerar, mutilar e destroçar,
fecham-se e abrem-se como gestos espasmódicos de louco… Contraio-me
desfalecido. Subitamente
a ameaça cessa. A porta volta a fechar-se… Desafrontado,
sinto-me, no entanto, miseravelmente fraco e cobarde. O
medo transfere-se e processa-se agora nas outras celas idênticas à minha. Abrem-se
e fecham-se portas. O
pavor; o hediondo; o riso: Éh!... Éh!... Éééé!!... Éh!... Éh!... Éééé!!... Éh!... Éh!... Éééé!!... Daqui
a momentos, como sempre, o monstro distribuirá a comida aos seus
prisioneiros. Ração porca, com conta, peso e medida. Nem mais um grama…
dir-se-ia, obedecendo a estudo racional, científico. Sinto-me
nausear. A fome obriga-me, no entanto, a devorar a porção… Em
tempos, na recém-adolescência, vivi feliz, em abundância. Sei, pelos
restantes encarcerados, que sou de uma raça viril, intrépida, predestinada.
Meus antepassados serviram o pré-histórico Egipto. Coadjuvavam gregos e
romanos. O rei Salomão fazia-se acompanhar dos meus avoengos. Irmãos meus
mereceram a estima dos povos ao longo dos tempos. Frequentemente serviram as
nações em guerra… Eis-me,
todavia, aferrolhado como vulgar pilharete. Inexoravelmente!...
Na
rotina do dia, desenfada-se o mostrengo realizando jogos de orientação e
combates de velocidade (dos quais me excluo, não por favoritismo mas pela
minha juventude, julgo) entre os seus encarcerados. Nesses momentos exalta-se
de animação. Salta, gesticula, gargalhadea… tudo tremula em redor, terrífico… como inferno… como inferno… O
riso envolvente… Éh!... Éh!... Éééé!!... Éh!... Éh!... Éééé!!... Éh!... Éh!... Éééé!!... Há
poucos dias, um dos cativos como eu, velho e exausto, passou-me rente às
grades. Nem me olhou. Arrastava-se pouco firme, hesitante, infeliz. Olhei-lhe
o tornozelo dextro ostentando o sinal da submissão,
o anel, o grilhão dos trabalhos forçados… Oh!
O
coração bale-me desordenadamente no peito; uma última injúria ao cativo –
trabalhos forçados! Na
manhã seguinte quando o masmorreiro voltou, ostensivamente, perante o horror,
o temor dos seus reclusos, em requintes malvados, estrangulou o velho detido…
Com
desprezo deixou o assassinado sobre as lages frias… E
foi-se a cascalhar: Éh!... Éh!... Éééé!!... Éh!... Éh!... Éééé!!... O
narrador calou-se. Fiquei
absorto na contemplação íntima do enigma que me era proposto. Um
crime. Uma
vítima… Um
assassino… Uma
testemunha… Os
ingredientes necessários e suficientes para um mistério. E o mistério
prende-me como mosca à teia invisível urdida pela aranha astuta. Não
se justifica, não se passa uma esponja, não se lava um crime! É preciso
encontrar o assassino. E pergunto-me: –
Quem é a vítima? –
Quem é o assassino? –
Quem é a testemunha? |
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© DANIEL FALCÃO |
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