Autor Data 16 de Abril de 2006 Secção Policiário [770] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2005/2006 Prova nº 6 Publicação Público |
ESTRANHA MENSAGEM Daniel Falcão Acompanhei o caso pelas
notícias que foram saindo nos jornais nacionais. A situação era, sem sombra
de dúvida, muita estranha. Com que intuito alguém roubaria o original,
exemplar único, do mais recente romance do conceituado escritor António
Mendonça. Com certeza não seria para o publicar! Embora muita gente ansiasse
pela publicação do romance, do qual nada se sabia, será que alguém o fizera
desaparecer para ser o seu único possuidor, na expectativa de que, mais
tarde, viesse a valer uma fortuna? Talvez a resposta que
muitos ansiavam conhecer nas últimas semanas estivesse em rota de colisão
comigo, ao ser chamado para investigar aquilo que parecia ser apenas mais um
homicídio. Procurem adivinhar o nome da vítima. Acertaram se responderam
António Mendonça. Ele mesmo! Foi o sobrinho de António
Mendonça, de seu nome Rui e também Mendonça de apelido, escritor de profissão
mas sem qualquer reconhecimento público, que comunicou à polícia ter
descoberto, já sem vida, o corpo do tio. Efectuara
esta comunicação utilizando o telefone existente na casa, exactamente
numa pequena mesa do hall de entrada. Quando cheguei à moradia,
possivelmente adquirida com os lucros proporcionados pela venda dos romances,
alguns deles traduzidos em várias línguas, já lá estava uma forte
representação policial, que, pelos vistos, mais rapidamente atendeu à
chamada. Entre os presentes, apenas
três personagens me eram desconhecidas. A minha atenção recaiu sobre uma
particularidade curiosa: tinham praticamente a mesma estatura e seriam muito
parecidos, não fossem os óculos fortemente graduados que um deles usava.
“Sobrinhos, com certeza”, pensei eu, porque sabia que a vítima não tinha
descendência directa. Mais tarde, verifiquei estar
errado. Acontece! Não se acerta sempre. Não foi difícil perceber
onde estava o corpo. Os movimentos dos meus colegas eram esclarecedores.
Encostei-me à ombreira da porta aberta. Tratava-se de um escritório típico.
Foram poucos os pormenores que me chamaram a atenção: a única janela fechada,
o computador em cima da secretária e, claro, as pernas da vítima. Entrei e segui em frente,
em direcção à janela. Voltei a encostar-me, desta
vez ao respectivo parapeito, e fiquei a observar os
movimentos, em torno do corpo, do médico legista e do fotógrafo. Na minha
frente, mas fora do escritório, três rostos ansiosos observavam-me. Finalmente com o meu campo
de visão mais alargado, pude reparar com mais atenção em todo o cenário. É
esta a minha profissão, mas continuo a ter alguma relutância em visitar
cenários de crime violento. Por isso, foi com agrado, assim que me dei por
satisfeito, que saí daquele local. Estando ultrapassada a
primeira fase da investigação, a observação cuidada do local do crime, passei
à fase seguinte: interrogatório dos principais suspeitos. Afinal, apenas dois eram
sobrinhos do escritor. O jovem dos óculos graduados era estranho à família.
Tinha sido recentemente contratado pela vítima para o leccionar
numa acção de formação em computadores. Comecei por interrogar os
familiares. Disseram que estiveram algum tempo juntos durante a tarde, tendo
aproveitado para lanchar, e regressaram ainda não passavam 15 minutos das
cinco da tarde. “Como é hábito, aos sábados, saí por volta das quatro horas para
passear o cão no parque. Quando me preparava para regressar a casa, encontrei
o Rui que me convidou para um lanche. Como estava um lindo dia de Primavera,
fomos até uma esplanada e depois regressamos juntos”, adiantou Patrícia
Mendonça. “Exactamente! Quando chegamos, enquanto a
Patrícia levou o cão para as traseiras da casa, eu entrei pela porta
principal. Dirigi-me ao escritório do meu tio, bati à porta e, como não
obtive qualquer resposta, abri-a e espreitei. Foi, então, que vi o corpo do
meu tio estendido no chão e me assustei. Corri para as traseiras, onde
encontrei a minha prima ainda a prender o cão e contei-lhe o que sucedera”,
declarou Rui, perante o aceno assertivo da cabeça da prima. “Assim que o Rui
me contou o que sucedera, avisamos imediatamente a polícia. Estávamos a
pousar o telefone quando tocou a campainha. Dirigimo-nos ambos à porta e
deparamos com este senhor que está, ou melhor, estava, a trabalhar para o
nosso tio.” A minha atenção mudou de direcção e fiquei a olhar para esta terceira personagem,
que se encontrava de pé, permitindo-me constatar tratar-se de um jovem
ligeiramente atarracado, na esperança que ele abrisse a boca. O que veio
mesmo a acontecer! “Eu sou estudante de informática e fui contratado pelo tio
destes senhores para o ensinar a utilizar o Wordstar. Hoje foi a nossa
primeira sessão, que decorreu das 14 às 17 horas, como combinado. Regressei
cá porque me esquecera de entregar a minuta do contrato. Foi nessa altura que
tomei conhecimento da morte do senhor Mendonça e me indicaram que talvez
fosse importante a minha presença quando chegasse a polícia.” Abriu a maleta
e retirou de lá uns papéis. “Cá está o contrato que estabelece os termos da
formação que estou a prestar e que, além disso, visa o desenvolvimento de um
programa para…” Não terminou a frase! A
entrada do cão na sala, um belíssimo perdigueiro, fez todos os olhos
voltarem-se na mesma direcção. Tal como entrou,
saiu, depois de atravessar a sala, dirigindo-se ao escritório. Corri, para
ver o que ia acontecer. O cão rodeou o corpo da vítima, cheirando as suas
roupas. Começou, em seguida, a rosnar na direcção
dos presentes e, caso a Patrícia e o Rui não o tivessem detido imediatamente,
os seus dentes caninos mostravam ser capazes de saborear as canelas de
qualquer um de nós. Enquanto rosnava furiosamente, em quase todas as direcções, foi levado para o exterior. Por fim, a melhor fase da
investigação! Sentado no meu gabinete, com as fotografias do local do crime
espalhadas sobre a secretária e em posse dos elementos considerados mais
relevantes, era chegada a altura de juntar as peças e descobrir quem
assassinara o escritor António Mendonça. Sim, porque não havia
dúvidas quanto a estarmos perante um caso de homicídio. Segundo o relatório
do médico legista, o óbito ocorrera perto das 17 horas. A bala que ficara
alojada na cabeça, depois de ter perfurado a palma da mão direita, foi fatal.
Confirmou-se o desaparecimento de uma estatueta relativamente valiosa, que,
após uma minuciosa busca no interior e no exterior da moradia, não fora
encontrada, tal como a arma do crime. O computador fora adquirido uma semana
antes, tratando-se por isso de um modelo bastante recente, e foi encontrado
ligado. No ecrã aparecia escrito o seguinte texto: «IUDEYFT SEY RFDU HKT
REKTGT WUKU UHSYT AHTJAHEY». Do lado exterior da janela do escritório, que
ficava no lado oposto àquele onde se encontrava a casota do cão, cujo
parapeito fica sensivelmente a 1,70 metros do chão, foram encontradas marcas
recentes de botas cardadas e, no canteiro, algumas flores partidas. Restos de
terra foram ainda observados, próximos da janela do escritório, nos ladrilhos
que rodeavam a casa. Os três suspeitos, assim como as suas roupas, foram objecto de testes laboratoriais, não tendo sido detectado, em nenhum deles, nada de importante. No
escritório, exceptuando a estatueta desaparecida,
tudo estava no devido lugar e não havia nada de interessante a registar. O
telefonema, comunicando à polícia a morte do escritor, ficara registado às
17h17. Com estes elementos, julgo
estar em condições para responder à questão: O que aconteceu por volta das
17h00? E também, já agora, acho que posso adiantar o que o jovem dos
computadores deixou por dizer, quando foi interrompido pela entrada
intempestiva do cão. |
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© DANIEL FALCÃO |
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