Autor

Detective Jeremias

 

Data

15 de Setembro de 2009

 

Secção

Mundo dos Passatempos [86]

 

Competição

Torneio A. Raposo

Problema nº 2

 

Publicação

O Almeirinense

 

 

SÃO JERÓNIMO NOS VALHA

Detective Jeremias

 

Tive conhecimento da existência do Detective Tempicos no final de 2003. Num jornal diário, Tempicos fazia o relato de um crime: o homicídio de Magalhães, não do navegador português, nem do famoso portátil, mas de um capitão reformado do exército. Nos anos seguintes, de forma incerta, eu ia ouvindo aqui e ali histórias sempre curiosas, algumas ilícitas, sobre este ex-detective da Judiciária.

A minha opinião sobre o Tempicos é pouco objectiva e tem oscilado entre a admiração e a desconfiança, ou entre um certo respeito e igual dose de desprezo. Confesso que foi este sentimento ambíguo e uma grande curiosidade que me levaram a aceitar sem hesitações o convite para um encontro de amigos. Parece que o Tempicos, após ter estado adoentado, decidiu recuperar energias num local tranquilo na serra de Monfirre. Possivelmente sentiu-se demasiado isolado e resolveu juntar um grupo pequeno num “lanchinho de fim de tarde”, de acordo com a informação que me chegou.

Partimos de Lisboa distribuídos em três carros a bem da economia de esforço e da pegada ecológica. O local do encontro devia estar no segredo dos deuses, pelo menos a julgar pelo silêncio profundo que se seguiu às minhas tentativas de obter resposta à pergunta: “Afinal, para onde é que nós vamos?”. Ainda consegui identificar o caminho até metade do percurso, mas depois desisti.

Não sei se foi por causa do calor intenso que entrava pelas janelas abertas. Não sei se foi a sucessão monótona de povoações em tudo idênticas, com os mesmo enfeites desbotados a engalanar a rua principal e com um ar desolador de fim de festa, apesar de o S. Pedro ter sido há poucos dias. Ou talvez fosse o mutismo dos meus companheiros de viagem (preocupados com a convalescença do amigo?) e o embalo do som ronronante do motor. Não sei. O que é certo é que dei comigo a imaginar como seria o Tempicos. Será que o iríamos encontrar estendido numa espreguiçadeira à sombra da árvore mais frondosa do jardim a bebericar, por uma palhinha colorida, um sumo fresco num copo alto? Ou estaria sentado, muito hirto, numa cadeira de espaldar alto, com olhar perdido e sofredor a fumar cachimbo? Ou estaria mergulhado na obscuridade da biblioteca, entre livros, papéis e medicamentos, com o baú das memórias aos pés e uma mantinha fina de lã a proteger os ossos do ar fresco da serra.

Eu podia ter imaginado mil e um cenários, mas era impossível adivinhar a realidade com que nos depararíamos à chegada. No meio da serra, bem no alto, estava uma casa recuperada a partir de um moinho antigo. No espaço envolvente, debaixo de uma latada, uma mesa feita de tábuas apoiadas em cavaletes oferecia-nos jarros de barro com sangria, pão caseiro, queijos, enchidos e leitão. No centro desta paisagem, o Tempicos de avental até aos tornozelos, pano atado à cintura e tenaz em riste, afadigava-se de volta do grelhador e do entrecosto. A doença tinha-se evaporado e do período de convalescença nem sinais, o que nos deixou a todos tranquilos, mas desconfiados. Tempicos recebeu-nos com um “Entrem, entrem, fiquem à vontade. A festa é para todos”. E enquanto lançava uma piscadela de olho cúmplice acrescentou: “Os santos populares já acabaram, mas hoje é dia de São Jerónimo e vamos todos celebrar!”. Eu, a única aprendiza do grupo, quase tive direito a beija-mão: “Muito gosto em, finalmente, conhecê-la” o que me deixou uma leve impressão de estar a ser gozada. Depois ordenou em tom galhofeiro: “Enquanto o entrecosto vai grelhando, podem atacar o leitão. Acabei mesmo agora de o ir buscar aqui ao lado, à Mealhada”.

O convívio foi um sucesso e decorreu num ambiente de muito boa disposição. Todos tinham um episódio do passado para contar. A conversa e os petiscos prolongaram-se pela noite dentro. Tempicos lançou-se na última história do encontro:

− Meus amigos, todos aqui sabem que eu nem sempre entrei em negócios limpos. Hoje estou disposto a revelar o meu melhor golpe de sempre. Julgo que nunca foi descoberto e nem vos sei dizer se estou arrependido ou se me sinto orgulhoso. A minha memória já não é o que era e ainda não consegui encontrar o caderno onde tenho este registo, por isso não me lembro ao certo da data em que se passaram estes factos. Mas isso nem é importante para perceberem o que aconteceu. Foi no século passado, quando a vigilância nos museus era quase inexistente, sei que eu já estava na Judite, supostamente do lado da lei, mas as minhas duas paixões – os museus e as mulheres – levaram-me a entrar neste esquema. O museu era do das Janelas Verdes e a mulher era uma obra-prima. Conhecia-a numa tasca do Bairro Alto, disse-me que era austríaca e estudante de arte, mas desconfio que fosse ladra profissional, pelo menos a julgar pela rapidez com que roubou o meu coração. Neste primeiro encontro propôs-me logo um negócio irrecusável. Teria a oportunidade de receber uma importância exorbitante, milhares de contos, em troca da minha colaboração no roubo de uma das obras mais importantes do museu: o São Jerónimo de Dürer. Em menos de um fósforo fiquei a conhecer tudo sobre o mais talentoso pintor alemão do Renascimento, ao mesmo tempo que me punha a par dos detalhes da operação. O amor da minha vida tinha com ela uma reprodução exacta e perfeita da obra que iríamos roubar.

Saída do nada, como por artes mágicas, mostrou-me uma pasta adequada ao transporte de obras de arte com uma pintura dentro, devidamente acondicionada. Representava um velho de barbas brancas, de veste vermelha e boina em tons de verde, que apontava acusadoramente uma caveira à sua esquerda. Dürer inspirara-se nas cores verde e rubra da bandeira de Portugal, país que mantinha relações comerciais com a feitoria de Antuérpia, e, de acordo com os peritos de arte, produzira uma obra de “vibrante cromatografia”.

A loira dos meus sonhos explicou-me ainda que a fiel reprodução era de sua própria autoria, feita pacientemente a partir de fotografias e reproduções do original e do estudo de Dürer pertencente à famosa galeria Albertina em Viena a que ela facilmente tivera acesso por ser estudante de arte.

Estava tudo planeado ao milímetro, o receptador da obra era um multimilionário grego e adiantara já metade do pagamento. A estratégia e o material a utilizar foram definidos com precisão militar. O golpe ficou agendado para o dia seguinte e foi limpinho como um bebé depois do banho, como irão ouvir já de seguida.

Dirigimo-nos à tardinha ao antigo palácio dos Condes de Alvor. Ela com o cabelo solto, a descer em ondas pelas costas e eu coxo, a descer e subir degraus, apoiado numa canadiana, o acessório indispensável ao crime. Ainda tentei uma piada, que ela não percebeu por se perder na tradução para o inglês: “Olha aqui o Tempicos com uma austríaca e uma canadiana. Bom, lá entrámos os dois num museu às moscas, sem criancinhas em visitas de estudo nem turistas formigados à volta dos painéis de S. Vicente. Os seguranças sonolentos com a digestão do almoço não nos ligaram nenhuma. Estava criado o ambiente para o roubo perfeito. A minha sereia vienense tratou de substituir o Jerónimo original pelo falso, que eu transportara enrolado, bem dissimulado, dentro da minha canadiana. Tudo feito com gestos de seda e com ferramentas profissionais minúsculas, que cabiam num estojo de unhas, e cuja existência eu desconhecia por completo. Meus amigos, é claro que a pintura original deslizou para o interior da canadiana e saiu do museu nas barbas dos vigilantes e debaixo do seu olhar condoído pelo meu coxear vacilante. Lembro-me agora que até nos demos ao luxo de passar o resto do dia no largo defronte à entrada original do museu onde, inspirados pelo conjunto escultórico do chafariz, só nos faltou dançar o Danúbio Azul, quase esquecidos da fortuna que a canadiana encerrava.

Só vos digo, um roubo que durou alguns minutos, um amor intenso de dois ou três dias e capital suficiente para comprar e renovar este paraíso onde agora vos recebo. Se o roubo foi detectado ou o quadro recuperado, isso nunca chegou aos corredores da polícia, nem às páginas dos jornais.

À estudante austríaca ou gatuna vianense, com quem troquei juras de amor eterno, nunca mais lhe pus a vista em cima, mas só lhe devo cantar louvores pelos momentos bem passados e por ter cumprido na íntegra a entrega da verba combinada. O São Jerónimo? Pois bem, fui visitá-lo o mês passado, na sala 61, do piso 1 do museu. È uma das obras de referência do museu. Se é o verdadeiro ou a cópia … isso não vos sei dizer…

O Tempicos ficou-se por aqui. Da plateia, que o escutava atentamente, ninguém se atreveu a abrir a boca. E depois de um silêncio só perturbado pelos grilos, fizemos um brinde final ao São Jerónimo, padroeiro dos detectives segundo o nosso anfitrião. Seguiram-se a despedidas envolvidas em promessas de um novo encontro.

No regresso a Lisboa, ficou-me a roer no ouvido comentário do A. Raposo para a Lena sentada ao seu lado no banco: “Este Tempicos saiu-nos cá um pantomineiro! Começou quando chegámos e só acabou na despedida”.

Caros confrades: merecerá o nosso querido Tempicos a fama de “pantomineiro”? Justifique, por favor…

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO