Autor

Detective Lupa de Pedra

 

Data

30 de Novembro de 2008

 

Secção

Policiário [906]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2008/2009

Prova nº 2

 

Publicação

Público

 

 

SEGREDO NEBULOSO

Detective Lupa de Pedra

 

Marcial Afonso era alfarrabista, dono de uma pequena loja em frente à ria de Aveiro. Muito mais do que uma profissão, essa actividade era para si uma enorme paixão. O que muitos consideravam ser livros ou folhas antigas sem qualquer utilidade, eram para ele prodigiosos tesouros da literatura e do pensamento caídos num injusto esquecimento e portas para um fascinante passado cheio de lições e revelações. Quando – com a sua lupa – se debruçava sobre um secular documento manuscrito, o tempo parecia que parava, esquecendo-se com frequência das horas das refeições, que o aguardavam no andar de cima, preparadas por Maria, sua abnegada companheira de sempre.

A enorme experiência de Marcial dotara-o com o dom de, com um simples relance, “topar” a importância (ou falta dela) de um livro ou documento. A sua fama era grande e eram muitos os que lhe pediam para dar um parecer quando algo de mais fora de normal se lhes deparava. Nesse “bendito vício”, como lhe chamava, tinham-se passado quase todas as décadas da sua quase octogenária existência, considerando o saldo como francamente positivo. Apenas a sua visão já não era a de outrora e estava a pagar um elevado preço por actividade tão minuciosa.

Não o surpreendeu, pois, quando, naquela tarde de Outubro de 2003, João Nicolau, antiquário do Porto e seu amigo de longa data, lhe telefonou a pedir ajuda. Combinaram um encontro para o dia seguinte, tendo Marcial feito questão de se deslocar, pois até precisava de desentorpecer e já há alguns anos que não ia ao Porto.

Marcial adorava viajar de comboio. Tal como de costume, comprou um bilhete para um lugar ao pé da janela direita, virado para a frente do percurso. Dessa forma observando as paisagens, conseguia abstrair-se totalmente de tudo o que o rodeava no interior da carruagem, perdendo-se e deleitando-se nas suas reflexões. Ironizava por vezes, dizendo que as viagens eram os únicos momentos em que olhava para o futuro.

As viagens ao Porto eram momentos especiais para Marcial. Era a cidade natal do seu pai e dos antepassados que o precederam, pelo que algo de emocional o acompanhava nestas deslocações. Naquele dia, porém, o nevoeiro era intenso, e apenas a custo conseguiria discernir mais do que cem metros à sua volta. Tal como era habitual, também desta vez, quando o intercomunicador alertou que era chegada a estação de Gaia, o seu coração agitou-se de emoção. Tentava perscrutar na paisagem. Do seu lado direito começava a vislumbrar-se, imponente, o centro histórico do Porto. Aquela cascata de casas granítica que descia pela encosta até ao Douro não parecia deste tempo nem deste mundo. Depois de alguns fugazes e rápidos momentos de contemplação, já o rio Douro era ultrapassado e o Alfa Pendular terminou a viagem chegando à estação de São Bento.

Combinaram que o encontro seria à porta de um centro comercial da cidade por volta do meio-dia. O táxi que o levou ao destino deslocou-se rapidamente para o local estabelecido. Durante a viagem eram várias as tabuletas e indicações que confirmavam o aproximar do destino pretendido: Rotunda da Boavista. Outros cartazes anunciavam um importante concerto de música clássica que nessa noite iria ocorrer na Casa da Música.

Foram ambos pontuais. Quando se encontraram, um longo abraço deixou bem claro a estima que tinham um pelo outro.

– Caro amigo, que saudades! Há quanto tempo! – disse Marcial.

– É verdade Nicolau. Como o tempo passa! Que bom que é bom rever-te. Então? Que novidades me trazes? Parecias agitado ao telefone.

– Marcial, vamos sentar-nos ali num café que eu conheço neste centro comercial.

Entraram e sentaram-se num local acolhedor e sossegado, onde poderiam falar tranquilamente.

João não perdeu mais tempo:

– Na passada semana pediram-me para ir a uma quinta senhorial, que está quase em ruína total. Os herdeiros são muitos e, apesar dos pergaminhos de que muito se orgulham, não têm dinheiro suficiente e querem vendê-la a uma imobiliária. Antes disso querem vender o pouco espólio que resistiu às desgraças da família, à impiedade do tempo e às investidas dos gatunos. Fui lá ver se havia peças que me interessassem. Móveis ou peças de arte havia poucas e de pouco valor mas encontrei uma pequena biblioteca de finais do século XIX que me despertou alguma curiosidade, que também comprei.

Apercebi-me que um dos livros era oco e que se tratava de um esconderijo, com uma discreta fechadura incrustada. Abri-a cuidadosamente para nada estragar e dentro encontrei um pequeno livro que conclui ser o diário de um dos antigos proprietários da referida quinta.

Esse diário é bastante interessante e narra acontecimentos da época, percebendo-se o impacto que tiveram na sua vida, na história local e até nacional.

Mas mais do que um documento de valor histórico, este diário é uma verdadeira confissão. No fim do diário – escrito talvez quando sentia o aproximar do fim dos seus dias –, o autor, angustiado e com manifesto receio do além, revelou aspectos de que menos se orgulhava da sua vida. Admite ter ordenado a um empregado que de noite se introduzisse na conservatória do registo civil local e que roubasse um livro de registos de baptismo. E isto porquê? Porque era pai de várias crianças, uma das quais ilegítima, fruto de um relacionamento extraconjugal com uma das criadas de servir de sua casa. O amor que nutria por essa criança deixou-o inconformado e decidiu obter o livro em causa a todo o custo, de forma a forjar um parentesco, apagando o nome da mãe verdadeira para legitimar o filho dentro do casal. Dessa forma, o menino seria também herdeiro dos bens da família, que se encontrava bem colocada socialmente.

Relata ainda que poucos dias depois, o livro voltou ao seu lugar, através de uma nova incursão nocturna do meliante, sem que nunca ninguém se tivesse apercebido da falta ou da falsificação do mesmo. Já viste Marcial? Nunca mais se saberá qual o livro forjado, nem qual o filho ilegítimo.

Este diário termina de uma forma estranha, pois na última linha, tem os seguintes caracteres:

 

ltcdh qdfhrsn tL cd LCBBBVB

 

Inicialmente pensei que tivesse sido um teste com a tinta ou até um indício de senilidade do autor, mas depois apercebi-me que talvez seja uma mensagem codificada. Tu, que também és um entendido em criptografia, podes ajudar-me a decifrar este enigma?

E o leitor? Poderá ajudar Marcial a decifrar esta última linha do diário?

E que outras imprecisões nos pode dizer sobre esta história?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO