Autor Data 25 de Junho de 2000 Secção Policiário [467] Competição Prova nº 8 Publicação Público |
ERRO FATAL Dic Roland Quem, algum dia, teve o
privilégio de chegar ao Rio de Janeiro por via marítima, jamais deixará de recordar
o espectáculo ímpar que a Natureza nos oferece quando o navio, aproando á
Baía de Guanabara, proporciona o ensejo de avistarmos, pela primeira vez, os
sucessivos e luminosos postais ilustrados que constituem a fimbria atlântica da
“Cidade Maravilhosa”. Leblon, Ipanema,
Copacabana, Botafogo, Flamengo, Pão de Açúcar e Corcovado são nomes e locais
que não carecem de guias turísticos para serem identificados, de tal modo
povoam o nosso imaginário; nomes e locais que já nos são familiares de tanto
os ouvirmos e vermos na música, no cinema, televisão e rádio. Mas essa
familiaridade e esse antecipado conhecimento não impedem que o primeiro
contacto seja de total e delicioso êxtase. Foi isso que me aconteceu, já lá
vai quase meio século, quando uma investigação policial me levou ao Brasil.
Mas, para mal dos meus pecados, a minha chegada ao Brasil foi tristemente ensombrada
por inesperados contratempos que me impediram de saborear a derradeira meia
hora de viagem… E tudo por causa de um
telegrama cifrado, urgem-te, da minha Direcção-Geral, recebido a bordo, em alto-mar,
poucas horas depois da saída do Funchal. Um dos telegrafistas veio entregar-mo
pessoalmente, quando me preparava para um mergulho na piscina. Um polícia, é
sabido, está sempre em serviço, mesmo se, em pleno oceano, se julga longe de surpresas… Embora contrariado, não
tive outro remédio senão sacrificar aquela esplendorosa manhã de Abril, e
recolhi ao camarote para decifrar a mensagem cujo teor, em linguagem
corrente, era o seguinte: “Por informação da Interpol, hoje recebida, há
fortes suspeitas de ter embarcado nesse navio um importante burlão e
traficante, ainda sem cadastro. Supõe-se que é português ou brasileiro. Idade
provável, 60 a 70 anos. Muda frequentemente de identidade, devendo viajar com
passaporte e nome falso. Magro, estatura média, insinuante e bom conversador.
Solicita-se colaboração relativa á colheita de quaisquer elementos susceptíveis
de interesse para a investigação em curso.” Em conclusão: banho de
piscina adiado; reunião com o comandante e outra, logo a seguir, com o comissário;
consulta minuciosa dos documentos de cada passageiro, arquivados no
comissariado; buscas discretas em alguns camarotes, quando possível; rigorosa
triagem com vista a seleccionar os que, por qualquer motivo, se situassem no
campo dos suspeitos. Trabalho de que resultou a
escolha de quatro indivíduos, todos viajando em 1ª classe: António Alves – 62 anos;
industrial e proprietário de fábricas texteis, no Brasil e em Portugal; de nacionalidade
portuguesa; Basilio Bastos – 68 anos;
licenciado em ciências geográficas e meteorologista aposentado; português, em
viagem turística; Carlos Clemente – 65 anos;
licenciado em História; grande proprietário no Rio Grande do Sul; brasileiro;
Durval Dantas – 58 anos;
sacerdote; brasileiro; de regresso ao Brasil, após umas férias em França, Itália
e Portugal. O quase permanente convívio
que, em regra, se estabelece durante uma viagem marítima, facilita e convida
a um relacionamento que, não raras vezes, se transforma em perdurável
amizade. Devo confessar que me aproveitei dessa especial circunstância para
me aproximar o mais possível dos quatro suspeitos, acabando por se criar,
entre nós, uma recíproca tendência para nos reunirmos no bar, nos decks, nas
salas de jogo, na piscina, etc. Claro que as minhas
secretas intenções não primavam pela lealdade; mas a consciência não me acusava
desse pecado, perante o dever de contribuir para a consecução de objectivo
mais nobre: tentar descobrir (e, se possível, deter) um indesejável
delinquente. E o certo é que, como diziam os romanos, “Audaces fortuna juvat”…
Estávamos a 21 de Abril. Um
mar calmo, uma temperatura amena e uma noite estrelada e luarenta, convidavam
a permanecer no convés em vez de recolher aos camarotes, apesar de sabermos
que, na manhã seguinte, chegaríamos ao Rio de Janeiro. Era assim todas as noites.
Como de costume, a conversa prolongava-se até altas horas, e o curioso é que
havia sempre um ou dois temas que nos faziam perder a noção do tempo. Naquele dia coube ao
reverendo padre Dantas lançar o mote, ao interromper um breve silêncio com o
seguinte comentário: – Já alguém se lembrou que,
precisamente amanhã, 22 de Abril, se comemora mais um aniversário da
descoberta do Brasil? Se o comandante do navio escolheu esta data para
comemorar o acontecimento, é bem capaz de me pedir para rezar a primeira
missa… – Só que o meu amigo não se
chama Henrique, não é de Coimbra, nem estamos na Pascoela; e, além disso,
amanhã avistaremos o Corcovado e não o Monte Pascoal… – atalhou o dr.
Clemente. – E quem me garante que o
rumo não foi alterado, para festejarmos a efeméride em Porto Seguro? – volveu
o padre, a rir, e talvez para mostrar que não ficava atrás do professor,
quanto a conhecimentos respeitantes à famosa viagem de Cabral. – Alto lá, reverendo! –
protestou António Alves. – Eu tenho urgência de
chegar ao meu destino, e não posso perder nem mais um dia, arrisco-me a perder
uma importante encomenda de roupa de cama… Gargalhada geral dos
restantes convivas, perante a egoísta preocupação do industrial que, todavia,
não se deu por vencido. – Riam! Riam à vontade!
Negócio é negócio, meus amigos! E, já agora, podem ter a certeza do seguinte:
se eu vivesse em 1500, garanto-vos que seria o fornecedor dos lençois que
Pedro Alvares Cabral carregou em Lisboa; e não deviam ser poucos!… Nova gargalhada, ainda mais
ruidosa. – Tenha calma, homem! Não tarda
que cheguemos à vista de terra, e logo se verá se estamos na Baía ou no Rio –
interveio, apaziguador, o dr. Bastos. – Com uma noite destas, não
será difícil distinguir o Corcovado A Lua, reparem, tem esta noite a
configuração de um D. Mas a Lua, como sabemos desde a escola primária, é
mentirosa: quando parece indicar que vai diminuir, está em quarto crescente; quando
desenha um C está a decrescer, ou seja, em quarto minguante. Assim, com este
céu limpo e uma lua a crescer, dentro de poucas horas poderá certificar-se de
que está no Rio de Janeiro… – Deus o ouça, amigo. Caso
contrário, teremos sarilho! Se me estragam o negócio, fico pior que uma fera!
– Safa! – gracejou o dr.
Clemente – Se ocorresse ao comandante a ideia de rumar a Porto Seguro, ver-se-ia
mais aflito consigo do que o próprio Bartolomeu Dias, quando, já num batel e
a caminho de terra firme (a Terra de Vera Cruz) teve de enfrentar um tubarão!
– Santo Deus! Disso não
sabia eu! – exclamou o padre Durval – Salvou-o (quem sabe?…) a Cruz celestial
que dali se vê tão bem: essa bela constelação a que hoje chamamos Cruzeiro do
Sul e que, se não estou em erro, foi pela primeira vez assinalada por um
tripulante dessa viagem, de nome João, numa famosa carta de 1 de Maio de 1500
e enviada ao rei D. Manuel numa caravela que, nessa data, regressou a Lisboa.
A conversa prometia prolongar-se por muito mais tempo, mas uma equipa de
marinheiros apareceu entretanto, para dar inicio à baldeação do convés. Passeio o resto da noite a
recordar o que ouvira. De repente, dei um salto na cama! Quando saí do
camarote já o navio singrava, imponente, na Baía de Guanabara. Não quis
importunar o comandante, ocupado com as manobras de aproximação, mas procurei
imediatamente o comissário. – Presumo que já sei quem
viaja com passaporte falso – disse-lhe. – Quem? – perguntou. A) – António Alves? B) – Basilio Bastos? C) – Carlos Clemente? D) – Durval Dantas? |
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© DANIEL FALCÃO |
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