Autor Data 1 de Maio de 1994 Secção Policiário [148] Competição Prova nº 2 Publicação Público |
O MISTÉRIO DA QUINTA DOS CASTANHEIROS Dr. Silva O inspector Silva estava
decididamente de mau humor naquela segunda-feira. Enquanto procedia à sua
higiene matinal, vasculhava a memória, procurando recordar-se de um
fim-de-semana como aquele. Realmente nunca naquela pequena cidade do
interior, onde vivia desde há quase 50 anos, se vira tão intenso vendaval,
acompanhado de forte chuva e trovoadas. De tal modo fora o vendaval que toda
a região estivera privada de energia eléctrica desde a manhã de sábado,
devido à queda de árvores sobre as linhas de alta tensão. E ainda bem que
fora restabelecida na segunda-feira, cerca das seis da manhã, pois podia
ouvir as notícias na rádio local enquanto se barbeava com a sua máquina
eléctrica. Vira-se privado de assistir
aos jogos de futebol de fim-de-semana e, mais importante, não pudera assistir
ao filme policial de domingo, em que se deliciava a tentar decifrar os
enigmas logo no início dos filmes. O telefonema que recebera cerca das oito
horas também não contribuíra em nada para melhorar o seu estado de espírito.
Fora bruscamente informado de que devia dirigir-se à residência do dr.
Nogueira, na Quinta dos Castanheiros, para averiguar em que condições o
proprietário aparecera morto. A sua equipa do DIC
(Departamento de Investigação Criminal) já tinha partido para o local. Após o
pequeno-almoço, o inspector Silva aprestou-se a percorrer no seu carro os
cerca de 15 quilómetros que o separavam da Quinta dos Castanheiros. Enquanto
conduzia lentamente e com as precauções exigidas pelos estragos provocados
pelo temporal ia recordando tudo o que sabia sobre o dr. Nogueira. Eram praticamente
conhecidos, pois tinham sido condiscípulos na escola primária. O dr. Nogueira
era filho único de pais muito ricos e tivera assim a possibilidade de se
licenciar em Gestão de Empresas, enquanto o inspector Silva ingressara ‘por
baixo’ no DIC, que hoje chefiava. No entanto, acompanhara de longe o percurso
do seu antigo colega e, por uma vez ou outra, encontravam-se casualmente na cidade,
por altura de férias. O dr. Nogueira tinha terminado
o seu curso e por morte dos pais tornara-se herdeiro de uma fabulosa fortuna,
que gerira e aumentam pondo em prática os conhecimentos adquiridos. Fora um ‘bon-vivant’,
vivendo só ou com companhias esporádicas na sumptuosa mansão da quinta,
mantendo-se no entanto solteiro. Parecia que este estado se
manteria quando, há cerca de 10 anos, encontrara ‘a mulher da sua vida’, com
quem casara após um breve romance e de quem muito rapidamente tivera um
filho. Mãe e filho passaram a ser a sua vida, ao ponto de deixar todos os
negócios apenas para se dedicar à família. Contratara na altura um seu
ex-colega de curso, o dr. Fernandes, para gerir toda a sua imensa fortuna, o
qual, a partir dessa altura, passara a residir também na Quinta dos
Castanheiros. Há cerca de dois anos, um
brutal acidente de viação em que se vira envolvido retirara definitivamente
do seu convívio a esposa e o filho. Após uma demorada recuperação física,
passara a viver com o desgosto e um constante remorso acompanhava-o: sentia-se
culpado pela morte dos seus, embora, na verdade, não tivesse tido o mínimo de
culpa. O que é certo é que, desesperado, já por duas vezes havia tentado pôr
fim aos seus dias: da primeira vez custara-lhe uma profunda cicatriz no braço
esquerdo, enquanto da segunda tudo se saldara por uma lavagem de estômago.
Das duas vezes valera-lhe a presença de espírito do dr. Fernandes, que
entretanto passara a residir no bloco principal da quinta. O inspector Silva chegava
ao portão da propriedade no preciso momento em que assim revia tudo o que
sabia sobre o falecido. Dentro da casa, foi conduzido ao quarto-escritório do
dr. Nogueira, cruzando-se com os elementos da sua equipa. Estes confirmaram-lhe
que a hora provável da morte, instantânea, fora cerca da meia-noite de
domingo. Informaram-no também de que estava terminada a recolha de elementos
periciais, pelo que o inspector tinha liberdade para mexer no que entendesse.
Antes de mais, procedeu a
uma minuciosa observação: lá estava o corpo, caído de bruços sobre a
secretária, em frente de uma máquina de escrever eléctrica. A cabeça
achava-se apoiada na fronte esquerda e num pequeno lago de sangue, o que ocultava
o orifício de entrada do projéctil. Mesmo depois de morto, o dr. Nogueira
apertava com violência um revólver na sua mão direita, também esta apoiada no
tampo da secretária, como que a sugerir que desta vez ninguém evitaria o que
estava a fazer. Na máquina de escrever encontrava-se uma folha de papel com
um curto texto escrito: ‘Não aguento mais, dr. Fernandes. Por favor, dê cumprimento
às minhas últimas vontades.’ O inspector Silva retirava
a folha da máquina quando se aproximou um vulto de alguém que se apresentou
como sendo o dr. Fernandes. Entabulando conversa, este último confirmou tudo
o que o inspector já sabia sobre o falecido: a sua vida antes e após o
casamento, a depressão que o atingira, as duas tentativas anteriores de
suicídio em que felizmente chegara a tempo. Sobre o texto informou que as
últimas vontades do falecido eram simples: como reconhecimento por lhe haver
salvo a vida por duas vezes, e como não tinha mais familiares, deixava-lhe
toda a fortuna, além de algum capital aos outros únicos empregados da casa – a
governanta-cozinheira e o seu marido, o caseiro. O inspector pediu então para
falar com estes, os quais se limitaram a informar que nada sabiam: a
cozinheira lamentou-se até pelo estrago que o prolongado corte de corrente
eléctrica provocara em géneros armazenados numa arca congeladora, uma vez que
não tinham gerador de emergência na quinta. Quanto ao dr. Fernandes,
também pouco sabia; acompanhara o amigo a jantar à luz de candeeiros de gás
e, realmente, achara-o uma vez mais muito deprimido. Cerca das 10 horas, o
dr. Nogueira recolhera ao quarto, enquanto ele, Fernandes, ficara ainda um
pouco, a ler os jornais de fim-de-semana. Cerca das onze horas, depois de o
casal de empregados se ter retirado, subira também ao seu quarto e, ao passar
pela porta do quarto do dr. Nogueira, ouvira distintamente o barulho da
máquina de escrever; ele usava sempre aquela pesada máquina, pois nunca se
adaptara a trabalhar com computadores; provavelmente estaria a escrever a
mensagem que tinham encontrado. Se ele tivesse podido adivinhar!... O inspector Silva olhava
para a folha que tinha retirado da máquina e, de súbito, perguntou se havia
em casa algum computador, ao que o dr. Fernandes respondeu afirmativamente:
ele próprio tinha um computador, com o qual trabalhava diariamente.
Deslocaram-se então aos seus aposentos e o inspetor instalou-se na mesa de
trabalho. Tinha conhecimentos razoáveis de utilização, pelo que se sentia à
vontade. Ligou a estação e, abrindo um programa de tratamento de texto,
dactilografou a frase que se encontrava na folha de papel que tinha retirado
da máquina eléctrica. Depois, durante algum tempo e no meio de um profundo
silêncio, o inspector seleccionou, escolheu e alterou tipos e estilos,
comparando sempre com o original. Ligou a impressora, do tipo ‘jacto de tinta’,
e que fazia impressões de uma elevada qualidade. Imprimiu várias vezes as
frases que entretanto escrevera. Por fim, ainda não
convencido, despediu-se do dr. Fernandes e preparou-se para regressar ao seu
gabinete. Ao entrar no carro reparou que, afinal, a folha que retirara da
máquina de escrever eléctrica não estava tão branca como parecera: na parte posterior
da folha notava-se uma leve mancha vermelha, como se uma gota de sangue
tivesse sido esmagada. Regressou à cidade,
lentamente, como viera. Pelo caminho a sua cabeça fervilhava de hipóteses: de
súbito, já perto do seu destino, ‘viu’ tudo claramente, como se estivesse a
ver no monitor do computador. Pergunta: O que ‘viu’ o
inspector Silva? Justifique as suas conclusões. |
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© DANIEL FALCÃO |
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