Autor Data 5 de Dezembro de 2004 Secção Policiário [699] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005
Prova nº 1 Publicação Público |
Solução de: CRIME SEM CASTIGO? Ecologista Orbílio sabia que estava
perante um terrível crime ambiental, capaz de dar cabo de toda uma imensa
zona territorial, durante anos e anos, talvez séculos. As evidências não deixavam
margem para dúvidas. Um produto ainda desconhecido envenenara o ar, a água, o
solo, acabando com toda a vida que por ali existia há milhares de anos. Em nome de um progresso que
é anunciado como redentor e brilhante, trucida-se sistematicamente aquela que
é a nossa maior herança. Claro que, em nome de um bem-estar que foi calma e
metodicamente colocado na boca daqueles que com ele menos beneficiam – e que
passa por automóveis, auto-estradas, telemóveis e
outros produtos supérfluos tornados indispensáveis –, fazem com que tornemos
nossos os problemas que o não são e nos vejamos a defender indústrias
assassinas, porque nos dão hoje os empregos que pagam os produtos e serviços
que nos oferecem como indispensáveis, embora tragam a morte e doença
generalizadas, amanhã, para os nossos filhos. Orbílio sabia que era assim
e não adiantava muito dizer aos derramadores de lágrimas de crocodilo que
quando se sentavam ao volante do carro ou consumiam produtos à base de extracções desalmadas, não estavam a fazer melhor que os
poluidores que agora procuravam. Orbílio matutava sobre
todos os acontecimentos e achou curioso que entre os maiores suspeitos do
crime ambiental não figurasse nenhum autarca ou membro dos governos que
concederam os alvarás ou permitiram que as fábricas laborassem naqueles
termos; como achou curioso que todos os responsáveis viessem em uníssono
dizer que tudo era muito seguro e que não havia especiais motivos para
alarme; como achou ainda mais curioso que todos viessem acenar com os postos
de trabalho… Toda a gente entregava de mão beijada o futuro dos filhos para
não perder as mordomias do presente! Orbílio acompanhava os
esforços para determinar o que causara aquela situação, mas o dono da Botafumo já havia proferido uma comunicação dizendo que
na sua fábrica não se manipulava o produto que causou a hecatombe,
reconhecendo, assim, que conhecia perfeitamente de onde partira o agente
mortífero… Orbílio não deixava de
pensar como começara mal aquela Primavera, precisamente no solstício…
Recordou os tempos em que se sentava nos bancos da escola e faziam uma festa
para comemorar o aniversário da prima mais famosa entre todos quanto fazem da
língua portuguesa a sua pátria: Primavera! Decorreram anos… Orbílio ainda ia muitas
vezes até ao perímetro dos terrenos contaminados, com vedações degradadas.
Aquele dia ficou-lhe para sempre gravado na memória. Deixou de ser o pastor
que era, porque perdeu todo o rebanho. Morreram dois dos seus sobrinhos e
muitos familiares e amigos, com maleitas cancerosas; mais de metade das
pessoas da aldeia andavam em perpétuos tratamentos a doenças esquisitas – mas
sem nenhuma relação com o acontecido, como diziam as autoridades; os
arredores eram buracos negros onde a alegria se perdeu… Os investigadores
investigaram, os tribunais julgaram e absolveram, os políticos
desvalorizaram, as fábricas prosseguiram o seu trabalho,
impávidas e serenas, com a certeza de estarem a prestar relevantes
serviços à Pátria e aos consumidores… O dono da Botafumo aparecera na semana passada na televisão a
assinar um importante acordo para instalar novas unidades fabris, como
ministro ambiental; o autarca que agradecia a presença das fábricas, assinou
por baixo, como ministro financeiro, e até o responsável pela investigação
apareceu a assinar, na qualidade de secretário da qualidade ambiental… Na assinatura, apenas
faltaram as dezenas de mortos e doentes daquela aldeia. Certamente, apenas
porque alguém se esqueceu de enviar os convites… |
© DANIEL FALCÃO |
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