Autor Data 12 de Setembro de 1999 Secção Policiário [426] Competição Prova nº 3 Publicação Público |
O QUARTETO ERA DE CORDAS Flo Um telefonema para o nosso serviço
alertou-nos para uma morte que tinha ocorrido numa hospedaria de nome A Tricaninha, localizada à saída de Coimbra, a caminho do
Norte. Ainda meia hora não havia passado após a denúncia e já a Brigada dos
Homicídios chegava ao local indicado. Eram precisamente 9h25m. À porta da hospedaria,
murmurando e chorando a morte da Dória, encontravam-se pouco mais de uma
dúzia de pessoas. A falecida, fadista, a actuar no restaurante há já alguns anos, era estimada e
querida por todos, tal a simpatia e bondade que irradiava. Na porta do restaurante
situado no rés-do-chão da hospedaria esperava-nos a proprietária, uma
cinquentona bem conservada, que se dava pelo nome de Marta. De lágrimas nos
olhos, guiou-nos até ao local da tragédia, situado no 3º piso. Este piso era
conhecido, entre o pessoal, por ‘cantinho dos artistas’, por serem estes que
o habitavam. Quando entrei no quarto da
Fernanda Dória – nome artístico – o quadro que se deparou era, hediondo:
caído ao lado da cama de casal, um corpo, do sexo feminino, seminu, de
bruços, apresentava a cabeça tombada para a esquerda, em cima de uma poça de
sangue. Um profundo golpe na garganta tinha originado a morte da fadista. Enquanto o fotógrafo fazia
os seus ‘bonecos’ e o médico legista ultimava o seu trabalho, fui tirando
alguns apontamentos. A exiguidade do espaço tornava difícil os nossos
movimentos. A mobília do pequeno quarto era pobre: um guarda-fatos
improvisado, contendo alguns xailes da fadista; uma mesa redonda com frascos
de perfumes e cremes de beleza; uma pequena prateleira a servir de
mesa-de-cabeceira. Pela parede viam-se colados cartazes com artistas, duas
fotos de família e uma fotografia da Dória no início da carreira. Aos pés da
cama, um espelho com uma bela moldura dourada destoava daquele ambiente
bolorento. Entretanto, Marta foi-me
informando de que, preocupada com o atraso da Dória, que havia combinado
estar pelas 9h no cabeleireiro, resolveu subir para a apressar. Porém, quando
empurrou a porta do quarto, foi o pânico; com gritos de desespero alarmou a
casa. Eram aproximadamente 9h. Gerou-se, naturalmente, a confusão e foi
alguém de fora que nos avisou. Discretamente, fui
continuando com o meu trabalho. Nenhum dos quartos tinha fechadura, mas a
porta que dava acesso ao terceiro piso estava sempre fechada e só os artistas
e a Marta é que tinham a chave. Mandei todos recolher aos respetivos
aposentos, pois era aí que cada um me iria contar o que sabia. O primeiro que
ouvi foi o Carlos: 55 anos, alto e magro; dedos das mãos bastante compridos e
delgados, ar de artista. Era o primeiro guitarrista. Acompanhava a Dória
desde que esta se iniciara na vida artística, já lá iam catorze anos. As
relações com a fadista, ultimamente, eram de certa distância. Na noite da
tragédia, tal como acontecia em todas as outras, tinham actuado
das 23h às 3horas. Tinha sido uma noite com muito público. Sobre o que fizera depois
do espectáculo, disse: ‘Comi qualquer coisa e,
depois, subi até ao meu quarto. Ao atravessar o pequeno corredor, vi luz
através das frestas da porta, no quarto da Dóris. Mudei de roupa e fui ter
com uns amigos aí a um bar. Regressei por volta das seis da manhã.’ O porteiro confirmou a sua
entrada, mas não se recorda de o ter visto sair. O quarto pouco diferia do
da fadista no mobiliário. Destacavam-se as duas guitarras, que confirmou
serem suas. Por mera curiosidade, dedilhei em ambas. Não sei nada de música, mas
gosto da harmonia dos sons. Quase no final da nossa
conversa, acrescentou ser a Dória sempre a primeira a subir para o seu
quarto, do qual raramente voltava a sair. Acordara com os gritos, seriam
talvez 9h, mas, cansado e ensonado como estava, não o pôde garantir. Baptista, o segundo
guitarrista, muito nervoso e de voz um pouco alterada, foi-me dizendo que não
tinha nada que ver com a morte da colega. Sujeito de baixa estatura, de fino
bigode bem aparado e fama de mulherengo – o que já lhe causara diversos
dissabores –, reconheceu que gostava da Dória e que não era por esta correspondido. Por causa disso, fizera uma cena de
ciúmes na noite fatídica. Descreveu-me os seus passos naquela noite: ‘Depois
do espectáculo, estive a comer e subi para o quarto
cerca de uma hora depois da Dória. Tomei banho, estive a ler e adormeci.
Acordei com a gritaria. Fui o último a chegar, já os meus colegas comentavam
o sucedido. Nem entrei no quarto da Dória.’ O quarto, como os
anteriores, era despido de mobiliário Enquanto falávamos, os meus dedos
passaram ao de leve pelas cordas da sua guitarra. O tom pareceu-me diferente
da do Carlos. Talvez fosse engano meu. Feliciano, o mais velho do
quarteto, nem parecia ter 61 anos. Era o primeiro viola.
Viera para o grupo pela mão do Carlos, gostara do ambiente e, como também
gostavam dele, ficara até hoje. A sua história saiu pronta: ‘Quando acabámos
subi ao meu quarto para tomar o meu medicamento. Quando regressei à sala só
lá estava o Jacinto com alguns clientes. Conversámos até tarde, depois,
despedi-me e voltei a subir. Seriam por aí 5h. Quando me preparava para me
deitar, mais de meia hora depois de subir, ouvi o barulho da porta da escada;
calculei que fosse o Jacinto. Acordei perto das 9h. Pouco depois, os gritos
da Marta assustaram-me de tal maneira que dei um salto na cama.’ Não resisti e tive de
dedilhar na sua viola. Interessante, como o som é tão diferente do das
guitarras. Por fim, ouvi o Jacinto, o segundo viola do grupo, em que ingressara havia seis
anos. Óptimo profissional, mas viciado no jogo,
tudo o que ganhava gastava. Estava cheio de dívidas, algumas a colegas; a
maior era precisamente à Dória. Enérgico e nervoso, ultimamente discutia por
tudo e por nada, o que estava a criar mau ambiente no grupo. Nessa noite,
após a actuação, juntara-se a uns clientes e pouco
depois já trocava palavras azedas com eles. Saiu intempestivamente,
regressando às sete menos um quarto. O porteiro estranhou o seu comportamento
e ficou admirado ao vê-lo entrar com a viola. ‘Entrei perto das sete e
vim logo para o quarto. Não ouvi nada. Mas… com a cabeça pesada como eu
vinha…’ O quarto não diferia dos
outros. Sobre a mesa, a viola, os sapatos, um para cada lado; uma camisa e
umas calças a um canto, molhadas e enroladas. Segundo me disse, com algum
orgulho, a sua viola fora fabricada para si em Berlim e, para ele, era como
se fosse um familiar. Mostrou algum desagrado quando passei os dedos pelas
cordas. Engraçado! Apesar de muito bonita, o som que dela emanava pareceu-me
bastante estranho. Com os dados possíveis em
meu poder, regressámos às origens. Restava-nos aguardar o relatório da
medicina legal e eu confirmar o meu raciocínio. O relatório chegou um dia
depois e dizia: ‘Autópsia realizada às 15h do mesmo dia em que foi encontrado
o cadáver, de indivíduo do sexo feminino, (…), o qual apresentava um ferimento
inciso no pescoço, de bordos regulares, com um comprimento de 11 centímetros
e com profundidade variável, diminuindo da direita para a esquerda e
atingindo a veia jugular direita e a laringe. O corpo não apresenta outros
sinais aparentes de violência. Descarta-se a possibilidade de suicídio. Hora
aproximada da morte situada entre as 7h e as 9h. Conclusão: degolação por
arma branca, talvez navalha ou faca de cozinha.’ A minha suspeita estava
confirmada. |
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© DANIEL FALCÃO |
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