Autores Data 29 de Dezembro de 1995 Secção O Detective
- Zona A-Team [255] Competição Problema nº 11 | Convívio de Coimbra Publicação Jornal de Almada |
O FURTO Flo e Gary Duas
salas e um escritório completavam o que noutro tempo fora a escola duma
aldeia portuguesa. Trinta anos de abandono haviam-na arruinado. Os putos de
então tornaram-se pais e, não se sabendo bem como, decidiram entre os jogos
do eixo e os tremoços dos “saraus” futebolísticos, com o aval da Junta e
outras autoridades, recuperar para os seus filhos a casa das suas saudades, dando-lhes
o mesmo fim. Num
jogo estranho com o tempo e a memória deixaram bem claro aos obreiros que a
escola deveria ficar exactamente igual à da sua meninice.
Pediram
à D. Maria de Jesus, a velha professora, que mantinha o mesmo carácter severo
e avesso aos sobressaltos da história, que acompanhasse a obra e se ocupasse
da decoração. Afinal, a sua memória sempre seria melhor do que a dos gaiatos de
outrora. A
professora, com o rigor que sempre a caracterizara, decidiu que apenas abdicaria,
a rogo soprado do sr. prior,
da separação de classes, unindo as duas salas numa só, aproveitando o vasto
espaço para os necessários WC, cuja entrada as faria pelas traseiras da
escola. Chegou,
finalmente, o dia da inauguração, na qual estive presente, já que, também eu
ali estudara. Recordando esse dia, ocorrido há cinco anos atrás, lembrei-me
de narrar o “incidente” que teve lugar, propondo-vos,
simultaneamente, um enigma. Tendo
soletrado os rios e as serras naquela escola, decidira integrar a romaria
que, no átrio, aguardou pacientemente o fim da prédica do prior, ganhando a benção em jeito de consolação. Seguiram-se as epopeias do
presidente da Junta, vindo depois um nédio luzídio,
representando Lisboa desunhar-se na gabação do empenho do povo da terra. Os
salamaleques terminaram quando a professora cortou uma grossa fita vermelha,
ao som das palmas e dos “dó-ré-mis” da charanga contratada. Aberta
a porta, entrou quem quis e pôde. Apenas foi permitido o acesso à enorme sala
de aula, já que o escritório se encontrava fechado. Por distracção,
segundo uns, por ataque de assepsia do abetumado mando da professora, que era
médico, segundo outros. Fosse como fosse, só a sala se encheu, perecendo um
mercado em dia de feira. Todos comentavam que apesar de estar pintada de
fresca data, de as carteiras com tampo em rampa e a secretária da professora,
fechada à frente, serem novinhas em folha, parecia mesmo terem recuado 30
anos, até à escola que conheceram e onde haviam sido iniciados nos enigmas
das letras e dos números. Por momentos também eu acreditei. À
esquerda situavam-se as janelas, sem cortinados, oferecendo um campo de visão
privilegiado para as montanhas vizinhas. Agora, como outrora, quebrando a severidade
da parede do lado direito, a velha professora não se esquecera do grande mapa
de Portugal. Em frente das carteiras, o quadro negro com o giz, o apagador e
uma cana da Índia encostada. Apostei, com os meus botões,
em como tinha escondida, sob a secretária, a muito temida palmatória. Virando-se
para mim, a Maria da Liberdade, de pestanejo delirante e idade indecifrável, rabujou
que não tardaria muito até as salas se encherem dos pechisbeques modernos. Conhecendo
a forma radical como arrumava a oposição masculina às suas teses que
avançava, acenei a concordância, a que ela não ligou, porque, estrídula,
chamava um “pigarço” que se encontrava no outro lado da sala, correndo depois
na sua direcção. À minha frente pude
ver o Jeremias, dono e único redactor do pasquim da
vila próxima, a quem o escrutínio condanara a
eterno derrotado, nunca aquecendo a cadeira que sempre ambicionara da Junta
da aldeia, onde morava. Rodeado pelo Acácio, o seu conselheiro político e pelo
rubicundo Arsénio Lopão, detective
por conta alheia, esquadrinhava a obra na mira do trunfo. Finda a inspecção, ouvi-o sussurrar-lhes, com um farto sorriso,
que alguém metera a mão no saco porque na parede situada sobre o quadro, a
todo o comprimento deste e até ao tecto, apenas
tinham dado uma demão de tinta. E a nudez pálida que tomava todo aquele
espaço tornava-se mais notada por causa do negro da lousa. Esfregando as
mãos, anteviu o inferno do ferrabrás que há anos combatia. Não
ficou sem eco, já que o Acácio, sossegado a jugular do amigo, explicou que
morderiam pela calada, combinando uma ceia de meditação, a fim de espremerem todas
as consequências políticas do facto. Olhei à minha
volta, confirmando que, apesar de a luz não faltar, ninguém reparara ou
parecia reparar na falha. Entre a destilação de ciência política do Acácio e
a minha ronda mental pela sala, o Arsénio, de olhos arregalados para o horizonte
e piranga no ar, soltou uma sonora gargalhada, concentrando em si as
atenções. Dirigindo-se
à professora, comentou com o gozo que outrora nunca tivera: «Apesar
de estar tudo o mais igual possível às recordações que guardámos, ou a sua
memória falhou, minha querida professora, ou fomos roubados. Veja lá se descobre…»
e segredou ao conselheiro algo que, não tendo eu escutado, lhe fez abrir a
boca num «Ah» surpreso que morreu no olhar inquisitivo do Jeremias. A velha
senhora grunhiu qualquer coisa e, sem dar cavaco, rumou aos encontrões pela
sala, indo colocar-se ao fundo desta. Fixou-a milimetricamente e, pouco
depois, bateu com a mão na testa. «Homessa!
Não é que fomos mesmo roubados?! – exclamou ante o pasmo geral – bem me
queria parecer que o ralho tardava, mas não me ocorreu… ainda ontem à tarde,
quando vim com a Maria da Liberdade colocar a fita, eles estavam ali. Não
estavam, Maria?» Esta,
tremulosa, afirmou não ter reparado porque não trouxera os óculos e, sendo assim,
não via palmo à sua frente. Para meu espanto, foi circulando em direcção à porta às apalpadelas. O
burburinho dos que perceberam sugeria, vá-se lá saber porquê, que ali havia
obra do S.I.S., exaltando o nédio, por que uma toranja não regimentava os
ofícios secretos da pátria. Desmanado, opugnou, de forma obscura, não estar
provada a transumância dos agentes secretos! Ao que o médico bradejou que já
o apsiquismo deles era lendário. Entre o enovelamento dos adivinhadores e o
desassossego ruidoso da maioria, gerou-se um barulho despropositado de barganhices, posteriormente arrumadas em tribunal. Quanto
à autoria do furto, o caso nunca foi decidido, apesar dos esforçados “part-times” do Arsénio Lopão.
Pela minha parte, fiquei com a sensação de que me passara a solução pelos
olhos. Hoje,
enquanto o processo morre nalgum arquivo de cartão, venho propor a resolução
deste caso singular. Assim: O
que é que estando presente há trinta anos atrás, não se encontrava na sala no
dia da inauguração, devido ao estranho furto? E, já agora, quem acham que foi o
autor do furto? |
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© DANIEL FALCÃO |
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