Autor

Folhasmil

 

Data

14 de Outubro de 2011

 

Secção

Correio Policial [2]

 

Publicação

Correio do Ribatejo

 

 

A RECEITA DOS CELESTES – GIROFLÉ, GIROFLÁ

Folhasmil

 

Francisco tinha dez anos pequenos e uma existência recheada de peripécias. Com algumas horas de vida fora abandonado, embrulhado em trapos imundos junto à porta exterior do Convento das Clarissas. Quis o destino (e a Santa Clara de Assis) que a irmã Joanna o ouvisse. Fora acolhido, baptizado e criado nos dois conventos, ora no de Santa Clara, ora no de São Francisco, usufruindo do melhor de cada um. Das irmãs recebia o mimo e os afagos maternais, e dos irmãos franciscanos, a liberdade. Era com eles que percorria o centro da urbe ou os arrabaldes, embora nestas saídas o miúdo estivesse mais interessado em espreitar as actividades de construção do que na pregação das práticas cristãs. Francisco vivia à solta, bravio e fazia o que lhe dava na gana. O irmão Alexandre, o frade mais culto, era responsável pelos livros e tentara ensinar-lhe alguma coisa. Sem sucesso. O rapaz ficou vermelho, assoprou e pós um ponto final no assunto argumentando que, além do irmão Alexandre, só o Guardião e o irmão despenseiro sabiam ler e ele, Francisco, quando crescesse não ia ser uma coisa nem outra. Assim, o irmão Alexandre passou a contar-lhe histórias, lendas e segredos. Francisco ficou a saber que São Francisco de Assis fora o criador da tradição do presépio na altura do Natal. Ficou a conhecer também a história da raposa e das uvas talhadas em pedra no cimo de uma das colunas do coro do Convento de São Francisco. Soube da existência do estreito túnel secreto que unia os dois conventos, onde mal passava um homem de estatura normal. Era uma galeria construída para facilitar uma fuga em caso de perseguições. O irmão Alexandre nunca lá tinha entrado, mas vira nos registos onde eram os acessos do túnel e também o seu comprimento de 700 pés reais (o pequeno Francisco não sabia nem medir, nem contar os passos. mas parecia ter olhos de gato e usava o túnel quase diariamente). O que mais gostava de ouvir eram as histórias de tirar o sono e arrepiar os cabelos: As Emparedadas, o Santíssimo Milagre, os Meninos de Alfange ou a tragédia sanguinária das irmãs Leonor e Maria Telles. Realidade ou fantasia, Francisco não tinha medo de nada, ao contrário do assustadiço irmão Alexandre que receava o anoitecer e abominava a escuridão.

Há duas semanas que Francisco farejava alguma coisa diferente. Nos Franciscanos, via rostos carrancudos, ouvia palavras zangadas desfechadas em surdina e conversas em tom agreste – logo interrompidas quando o avistavam. Desta vez, nem Inocêncio, o Guardião, homem pequeno mas de pulso firme, conseguia lidar com a situação. Parecia inacreditável que este frade, que dirigia o convento e impunha respeito, estivesse agora com dificuldades em desanuviar o clima de tensão. Francisco tentou descobrir o que se passava. Fez-se despercebido, como a osga na parede, e não tardou a desvendar parte do mistério. Alguns irmãos franciscanos pareciam agastados com as benesses das Clarissas. Francisco até achou estranho. O irmão Alexandre tinha-lhe contado que Clarissas e Franciscanos eram irmãos desde que o mundo é mundo. O primeiro nome fora mesmo Irmãos e Irmãs da Penitência. Mas o irmão Alexandre também lhe tinha falado nos pecados do ciúme e da inveja, e as coisas começaram a ficar mais claras na cabeça do rapaz. Outras rivalidades eram bem evidentes: o tamanho da igreja do convento de Santa Clara – bem maior que a dos Franciscanos – fazia com que muitos nobres a quisessem escolher para última morada; ou a arca de Da. Leonor Afonso, razão pela qual muitas damas da corte e da nobreza faziam votos religiosos e doavam os seus bens ao Convento das Clarissas; isto para não falar nas reais mercês e nos benefícios do papa. A gota de água nesta rivalidade era agora dada pelo mais recente sucesso alcançado pelas irmãs: a doçaria conventual.

À noitinha, a mente de Francisco ruminava ainda esta realidade. Gostava de dormir enrolado no meio do perfumado roseiral das Clarissas. Era tão antigo, plantado no tempo do Rei Bolonhês, que a própria terra cheirava a rosas. E além disso, para Francisco, tinha a vantagem de ficar perto do acesso ao túnel secreto.

Mais tarde, um som de passos sorrateiros acordou o miúdo, que era bicho de sono leve. Depois ouviu o baque seco da tampa a cair – alguém entrava no túnel – e Francisco voltou a adormecer. O sol ainda não tinha nascido, nem sequer tinha tocado o sino para as matinas, quando um alvoroço o acordou. Alguém tinha roubado qualquer coisa dos aposentos da irmã Joanna, a responsável pelo convento. Do bauzinho onde guardava vários documentos apenas tinha desaparecido a receita dos celestes – o doce divinal. Era a novidade e a criação açucarada mais pretendida. O registo das quantidades exactas de ingredientes era unicamente do conhecimento da irmã Joanna e da irmã Berengária, a despenseira. Se o doce começasse a ser feito por aí, as Clarissas perderiam o exclusivo e um rendimento considerável. O segredo estava na quantidade dos diferentes produtos utilizados. Que levam amêndoas, ovos e açúcar até Francisco sabia. Humm… o rapaz recordou a areia peganhenta que lhe tinham dado a provar. Tão doce como o mel. A irmã Joanna disse que o açúcar vinha de longe – da ilha da Madeira e Francisco imaginava uma árvore de madeira clara, que dava serradura de açúcar. Mas quem teria sido o ladrão? Francisco pensou e percorreu o túnel até ao Convento de São Francisco. A meio caminho tropeçou num tecido que depois viu ser um manto das irmãs Clarissas. Fora uma irmã que deixara cair o manto? Ou o ladrão entrara disfarçado? A quem poderia interessar a receita dos Celestes? A cabeça do rapaz rebentava com tantas perguntas de uma vez só. Nos Franciscanos reinava a calma. O dia também ainda não tinha começado por esses lados. O irmão Bonifácio, o despenseiro, dormitava sentado junto aos claustros. Tinha dificuldade em dormir. Como todos os despenseiros que o rapaz conhecia era demasiado gordo, respirava mal e tinha falta de ar e, por isso, nunca se deitava. Francisco ainda pensou em acordar o frade para lhe contar o sucedido. Depois, arregalou os olhos, bateu com a mão na testa e disse alto: Já sei quem é o ladrão!

 

Ao leitor não se pede que descubra erros históricos, pois se os houver são inadvertidos.

O que se pretende é saber o nome do ladrão da receita dos celestes e, já agora, como conseguiu o leitor chegar a essa conclusão.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO