Autor

H. Rái

 

Data

28 de Março de 2010

 

Secção

Policiário [975]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2010

Prova nº 2 (Parte I)

 

Publicação

Público

 

 

Solução de:

ALI JAZ O ALI KATE

H. Rái

 

O engenheiro Ali Kate era director de fabrico e sócio da empresa Suggysopra, de Évora. Gostava de gatos e na sexta-feira, 20 de Março de 2009, foi ao telhado da vizinha apanhar o seu, já passava da meia-noite, que lhe pagou com três pequenos arranhões paralelos na região temporal adjacente à orelha esquerda.

No domingo, foi necessário fazer trabalho extraordinário para ultimar uma encomenda. Como Évora estava sob um terrível temporal (ver http://www.meteopt.com/forum/portugal/domingo-convectivo-trovoadas-no-alentejo-22-marco-2009-a-3222.html), com muita chuva e trovoadas, Ali, depois de comprar o Público numa tabacaria da Praça do Giraldo e de tomar o pequeno-almoço na pastelaria do lado, foi de táxi para a fábrica e não de bicicleta como de costume.

No seu gabinete, nos escritórios da fábrica, um pouco antes das 10 horas, entrou em conferência, pelo Skype, com o administrador da empresa, que se encontrava em Bruxelas para estudar as perspectivas de lançamento dos seus produtos na China. Com condições atmosféricas tão adversas, não admira que a imagem e o som fossem de muito má qualidade, como ocorreu. Por isso, o Ali ligou os auscultadores do mp3 ao seu notebook, numa tentativa de se abstrair dos sons envolventes e perceber melhor o que o seu interlocutor dizia. Passado algum tempo, sentindo que alguém abria a porta do gabinete, olhou para esta e não pode evitar um ar de surpresa ao ver que a mulher do seu interlocutor estava ali à sua porta de arma na mão pronta a disparar sobre si. Procurou desviar-se, continuando o seu movimento para a direita, mas nesse instante um enorme estrondo ecoou por toda a fábrica, em consequência do violento raio que sobre ela caiu, pelo que Ali nem chegou a sentir a bala a perfurar-lhe o músculo do ombro esquerdo. A bala atravessou a grossa camisola e a camisa que vestia, indo-se perder, inerte, junto à parede do fundo da sala. A ferida não provocou hemorragia, mas a morte foi imediata e nada teve que ver com o efeito letal do tiro que recebeu. Pelo contrário, sobrecarregando o computador e os fios dos auscultadores, que lhe provocaram dois ténues riscos negros no maxilar inferior, foi o facto de a descarga eléctrica ter penetrado fulgurante e intensamente na zona da pele adjacente aos pavilhões auditivos do engenheiro Ali, atravessando o seu corpo de alto a baixo, que lhe provocou a morte. A maior intensidade do rigor mortis na zona envolvente da entrada dos canais auditivos e as pequenas ampolas na pele dos tragos, de um e outro lado, atestam indubitavelmente a elevada intensidade da corrente eléctrica que penetrou, e o calor desenvolvido no ponto de entrada, no corpo do infeliz.

D. Bertolinda ficou paralisada de espanto, mas rapidamente recuperou o seu sangue-frio. Fechou a porta do gabinete, limpou o puxador com o lenço e saiu da fábrica o mais rapidamente que pôde. Agora, já bem longe do local, nem ela mesma percebia porque havia disparado sobre Ali. Certamente que iriam querer ouvi-la, mas só Cerrótrinco, guarda-portão da fábrica, sabia que ela estivera na fábrica e esse não iria denunciar a sua presença aí, pois devia-lhe o emprego, como outros conterrâneos de Asseiceira e de algumas aldeias vizinhas, como Arrouquelas, de onde era natural o Cerrótrinco. E se não ter maneira de justificar onde tinha estado naquele dia, àquela hora, já deixaria Bertolinda em maus lençóis, pior ainda ficou a sua situação quando o senhor Com Praki, director comercial da empresa, que estava na fábrica àquela hora, muito ocupado com o seu staff a organizar a saída de uma encomenda, afirmou que lhe pareceu estranho vê-la passar rente à parede, a coberto do telheiro, em direcção aos escritórios. Não podia haver confusão entre D. Bertolinda e a Drª Presumida, mulher do Dr. Cifrões, director financeiro da empresa, que também esteve na fábrica àquela hora a arrumar os seus papéis em consequência de ter sido despedido, pois a doutora, naquele momento, estava com uma amiga no Pavilhão dos Salesianos a assistir ao convívio das miúdas do basquete (ver http://sebasquetebol.wordpress.com/2009/03/).

Na manhã do dia seguinte, ao chegar ao escritório, o administrador da empresa empurrou a porta do gabinete do engenheiro Ali deparando-se com este morto e enrijecido, pelo que foi com naturalidade que comentou à polícia: “Se o homem estava morto, como me poderia responder?". A presença de vestígios de comida, no estômago, e de cafeína e níveis não usuais de glicose, no sangue, ajudaram a confirmar que Ali sucumbiu naquela manhã algum tempo depois de ter tomado o seu pequeno-almoço.

© DANIEL FALCÃO