Autor Data 23 de Maio de 1993 Secção Policiário [99] Competição Prova nº 6 Publicação Público |
O MISTÉRIO DA CASA DE BANHO H. Sapiens Neste ano de 1991, a actividade crescente das quadrilhas de sequestradores tem
constituído uma ameaça para a tranquilidade dos possuidores, de fortunas
avultadas. Discretamente, os resgates vão sendo pagos e os criminosos ganham
confiança e tornam-se cada vez mais audaciosos. Ontem, quando houve notícia
de que o empresário Casimiro Xavier havia sido levado de sua própria casa,
por três homens armados, a Investigação Especial entrou em acção de imediato. Meia hora depois do evento, já o chefe
André, acompanhado de um auxiliar, estava no teatro das operações, para
recolher os primeiros indícios. Na sua cabeça, sucediam-se com insistência os
nomes das quadrilhas mais operativas nesta modalidade criminal. Qualquer delas dispunha de
capacidade de planeamento e de meios logísticos para desferir um golpe como
aquele. Havia o bando do Malaquias Vinte e Um, gente manhosa e sagaz, com uma
boa rede de informadores infiltrada nas esferas do
dinheiro, que raramente maltratava os reféns à sua guarda e que conduzia as
subsequentes transacções com assinalável ética profissional.
No mesmo plano de eficácia,
mas com métodos mais primários e lamentável falta de escrúpulos, actuavam os homens do Cassiano Meia Leca, muito mal
vistos pela comunicação social por não enjeitarem o rapto de crianças e adolescentes.
Seguindo motivações
diferentes, mas explorando o mesmo ramo com relativo sucesso, movimentava-se
uma seita escatológica, os Anunciadores do Tempo do Fogo, que, explicavam, faziam
reverter o produto dos resgates para uma fundação encarregada de levar a cabo
a construção de um vasto abrigo subterrâneo, onde se hão-de
acoitar os eleitos, quando as labaredas descerem do céu. Com estes pensamentos e
também com muita amargura, chegou o Chefe André. É que o raptado era seu
amigo desde infância longínqua, tempo em que ambos eram considerados crianças
sobredotadas e cultivavam uma saudável emulação no desatar de intrincados
problemas de álgebra liceal. A velha criada Laura
assistira a tudo do alto da galeria que, a nível do primeiro andar, circundava
o grande salão de entrada. Calada e imóvel, semioculta por um frondoso vaso
com plantas, passara despercebida aos raptores. Contou que a um toque de
campainha o próprio Casimiro abrira a porta e fizera entrar os visitantes,
com modos afáveis e correctos apertos de mão. Mas logo o ambiente se
turvara. Após poucas palavras em voz baixa, os recém-chegados sacaram das
pistolas e acossaram o Casimiro contra o fogão de sala. Não houve
resistência, que teria sido fútil: a cena passou-se com moderação. Logo a
seguir, quando todos se encaminhavam para a porta da rua, o Casimiro pediu
para ir à casa de banho. A solicitação foi atendida, mas anta fizeram-no
despir o casaca que ficou em poder dos raptores. – Mas porquê, Chefe.
Tiraram-lhe o casaco, porquê? – perguntou o
auxiliar, interrompendo o relato da serviçal. – Bem vê, Etelvino. Nos
bolsos do casaco, os cidadãos transportam normalmente uma grande variedade de
objectos, tais como canetas, lapiseiras, agendas e
carteiras, com os quais se poderia deixar discretamente um recado escrito,
uma informação, uma pista. Quiseram privá-lo dessa possibilidade. Mas eu
estou a ver o cintilante raciocínio de Casimiro. Tenho a certeza que arranjou
maneira de nos deixar algo. Saibamos procurar. O Casimiro demorou-se pouco
tempo, coisa de dois minutos. Logo após, um dos bandoleiros entrou no recinto
durante uns instantes e acabou por sair abanando negativamente a cabeça. Foi
então que os quatro abandonaram a casa e entraram no automóvel. O Chefe André sobressaltou-se:
– A senhora viu-os entrar
no automóvel? Onde estava o automóvel? A velha criada Laura
explicou: – Parado aí em frente,
mesmo junto da janela. Era um carro grande e azul. Como o senhor vê, este
lado do salão é todo em vidro. Agora os reposteiros estão corridos, mas na
altura estavam abertos e o carro via-se todo. – Por favor, pense bem
antes de responder. A matrícula estava visível? A senhora reparou na chapa da
matrícula do automóvel. A velha criada Laura coçou
o queixo devagar: – A matrícula? Via-se muito
bem, o carro estava estacionado de frente para o salão. Eu vi-a, mas, até me
envergonho, esqueci-me, fugiu-me da ideia… Só sei que começava por L como eu
e… espere… acho que também tinha um 3. Tenha paciência, eu estava a tremer e
nunca fui boa em contas… – Um 3… Mas, o seu patrão, acha que ele também a viu? – Pois claro que sim.
Estava bem mais perto do que eu. Terminada esta primeira conversa com a única
testemunha do caso, o Chefe André acolitado pelo seu auxiliar entrou na espaçosa
casa de banho. Soberbos mosaicos, boas
louças, tapetes, toalhas, um espelho enorme, um armário: o cenário esperado. Seguiram-se dez minutos de
pesquisa em que o Chefe farejou os recantos e recipientes, sendo os mais
aromáticos seis ou sete frascos de cremes, champôs e loções de consumo
restrito aos bem instalados deste mundo. À saída, trazia na mão dois
objectos achados no armário: um relógio de pulso e
um copo de vidro escuro. – Como eu esperava,
Etelvino, o nosso homem não perdeu a lucidez e arranjou jeito de nos passar
umas informações. Deve ter identificado a quadrilha e anotado a matrícula do
automóvel em que iria ser transportado. Nada mais podia saber no momento. Pressinto
que o mistério está aqui nestas coisas que não se coadunam com uma casa de
banho bem ordenada. Um relógio de pulso de caixa de ouro e um copo que nos
surpreende pelo seu conteúdo. Dizendo isto, o Chefe André virou o copo sobre
uma mesa e dele saíram: a metade esquerda de uma nota de mil escudos, uma
moeda de cinquenta escudos e uma carteira de fósforos. – Que lhe parece, Etelvino?
– O relógio está atrasado.
São agora 4 da tarde e o relógio marca 8 horas. O Chefe André franziu a
testa com ar de desgosto: – Atrasado? E por que não
adiantado? Na verdade, ele está apenas parado. – É isso, parado nas 8
horas. Coisa estranha… – 8 horas,
uma figa! Enxergue bem: 8 horas e um minuto. – Diferença mínima, Chefe. O chefe André ficou
pensativo e murmurou: – Um minuto é muito tempo.
Podem acontecer tantas coisas… Pode significar tanto… Bom. E quanto ao resto?
O auxiliar concentrou-se: – Dinheiro e fósforos.
Coisas que ele tinha nos bolsos das calças. – Exacto.
Analisemos bem: metade de uma nota de 1000$00 sem quaisquer marcas, cortes ou
dobragens. Uma moeda de 50$00 cunhada em 1986. E
temos uma carteira de fósforos nova. Repare que as superfícies de atrito não têm
marcas de utilização. – Ora esta, Chefe… Nunca
foi utilizada, concordo. Mas faltam muitos fósforos. Que é
feito deles? Ora veja, está
por metade… – Nem mais. Curioso, não é?... Faltam exactamente 20
fósforos. Verifique: faltam 6 na primeira fila, 5 na segunda, 7 na terceira e
só 2 na quarta. – Se isso tem algum
significado, vai-nos dar cabo da cabeça, Chefe. Meia nota, meia carteira de
fósforos, a moeda por acaso inteira… Tudo isto dentro de um copo de vidro
azul! Durante uns instantes
ficaram calados, escutando as engrenagens cerebrais. De repente, o Chefe André
fez estalar os dedos e descontraiu-se num sorriso manhoso: – Não foi desta que me
enrolou… Teve dois minutos para armar o enredo que eu descobri em menos de
um. De qualquer modo, parabéns para o “Cento e Dez”!
Virou-se para o auxiliar
perplexo: – Vamos embora, rápido. Há
que pôr o pessoal em campo. Temos elementos seguros. O auxiliar, aturdido: – O Chefe disse 110? Mais
mistério? – Nada disso. Era a alcunha
dele no liceu. Como se chamava Casimiro Xavier, traduzimos as iniciais em
numeração romana e ficou o “Cento e Dez”. Ele achava
pouco, em termos de QI. Dirigiram-se para a porta,
com um aceno de despedida para a velha criada Lauta. Etelvino ainda perguntou: – E o Chefe, como era a sua
alcunha? – Eu era o “Cabecinha de
Melão”, nunca percebi bem porquê. O que se quer saber agora
é: – Qual a organização
responsável pelo sequestro. – Qual a matrícula do carro
dos raptores? |
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© DANIEL FALCÃO |
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