Autor Data 14 de Março de 2010 Secção Policiário [973] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2010 Prova nº 3 (Parte II) Publicação Público |
O CASO DO ESPELHO QUEBRADO Inspector Boavida Evaristo,
o velho “baeta” da calçada de Santana, a quem chamam “o jornal de actualidades do Rossio”, é um tipo muito bem-disposto,
mas hoje está desolado. Ele é um dos poucos comerciantes do bairro que
preservam no seu estabelecimento o toque de outros tempos, constituindo-se
ainda hoje uma peça fundamental do xadrez social daquele recanto de Lisboa.
As paredes, de um cor-de-rosa que é mesmo velho,
conservam a patine do passado. As cadeiras, de couro gasto e metal polido,
conferem autenticidade ao local. Mas é o grande espelho exposto ao fundo do
estabelecimento, por onde Evaristo vê a vida passar lá fora enquanto
trabalha, que dá todo o carácter ao espaço. A vida deixou de reflectir no espelho. Alguém o quebrou. É esse o motivo
da desolação do barbeiro. Quando
o Evaristo se aproximou da bancada de apoio onde tem os pertences pessoais e
levantou o som do pequeno televisor, cujas imagens surdas são a sua companhia
de todas as horas quando não tem clientes, para ver o Jornal da Tarde, uma
pedra entrou pela barbearia adentro quebrando em vários pedaços o seu
estimado espelho. Preso à maldita pedra, com um fio de embrulho, voou um
pedaço de papel com uma inscrição em letras irregulares de escrita infantil:
“ó Evaristu tóma lá diztu”. O barbeiro não tem dúvidas quanto à autoria
daquela terrível infâmia. Os quatro miúdos da Palmira levaram toda a santa
manhã a maçá-lo com o arremesso de pequenas coisas, botões, caricas,
estalinhos, garrafinhas de mau cheiro, ao mesmo tempo que gritavam “ó
Evaristo, toma lá disto”. Informado
desta ocorrência, o subchefe Pinguinhas mandou procurar os catraios e
trazê-los à sua beira, para apurar quem tinha sido o responsável pelo
arremesso da pedra. “Qual de vocês partiu o espelho do Evaristo?” – foi a pergunta que fez a todos eles, de chofre, assim sem
mais. Manel, o mais velho, 13 anos acabadinhos de fazer, admitiu que ele e os
irmãos tinham andado a atirar coisas para a barbearia, mas insistiu nada ter
a ver com aquela história do espelho. Zeca, o mais traquina, pouco menos de
doze anos, também disse nada saber do espelho, mas confessou ter chateado o
velho “baeta” durante boa parte da manhã. Quico, o mais novato, quase a fazer
sete anitos, jurou a pés juntos nada saber do espelho. Beto, nove anos bem
medidos, afinou pelo mesmo diapasão dos irmãos. Os
miúdos estavam aterrados. Eles sabiam muito bem que aquilo de que eram
suspeitos não seria suficiente para serem presos, caso viessem a ser
acusados. Além disso, o subchefe Pinguinhas era uma boa alma, incapaz de
fazer algo que os pudesse molestar a valer, ao contrário do Jaquim, o pai dos catraios, um homem de muitos músculos e
poucos miolos, mas honrado como poucos, que era bem capaz de “premiar” os
filhos com uma valente sova se viesse a tomar conhecimento daquela
ocorrência. Percebendo a aflição dos rapazes, bem visível no mais velho, a
tremer que nem varas verdes, agarrado aos irmãos como se quisesse protegê-los
a todos num único abraço, Pinguinhas apenas ousou fazer mais uma pergunta:
“Onde é que vocês andaram, desde manhã até agora?” Manel
respondeu que andou na rua até perto das 11 horas, seguindo depois para o
Mercado onde a mãe trabalha. Zeca adiantou que não largou o irmão mais velho
até agora. Quico contou que estivera quase toda a manhã na rua, mas que à
hora em que partiram o espelho do Evaristo estava em casa a comer a sopa que
a mãe deixara no frigorífico. Beto, por sua vez, disse não saber exactamente a que horas terá ido comer, sendo certo que,
quando chegou a casa, já lá estava o Quico. De uma coisa ele está seguro:
depois de deixarem de chatear o barbeiro, foi jogar à bola com a malta da
Mouraria para o Castelo de São Jorge. O subchefe Pinguinhas sorriu. Neste
momento, ele já sabia qual deles tinha sido o autor da pedrada que deu cabo
do espelho do Evaristo. E você, meu caro “detective”,
o que acha? A
– Foi o Manel B
– Foi o Zeca C
– Foi o Quico D
– Foi o Beto |
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© DANIEL FALCÃO |
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