Autor Data 15 de Maio de 2011 Secção Policiário [1034] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2011 Prova nº 4 (Parte I) Publicação Público |
Solução de: SMALUCO E O PERIGOSO BOMBISTA Inspector Boavida Pode
parecer estranho que Jean-Pierre, sendo francês, se exprima num mesclado de
italiano com castelhano e catalão, mas convém não esquecer que ele só se fez
ouvir quando Natália o abordou em português com sotaque brasileiro. Podemos
por isso admitir que o rapaz apenas quis ser simpático com a sua
interlocutora, esforçando-se por se exprimir em português. Pode
ainda parecer insólito que um jovem parisiense ostente uma t-shirt de
promoção à Torre de Piza e que, ao ser questionado sobre pontos de interesse
da sua cidade natal, se tenha referido a alguns dos clássicos locais
turísticos de que toda a gente já ouviu falar e não a lugares mais singulares
e pouco conhecidos de Paris. Por
um lado, Jean-Pierre não será o primeiro nem o último cidadão do mundo a
envergar uma peça de roupa onde figure o símbolo de uma cidade que não seja a
sua; e por outro lado, o facto de ter balbuciado alguns lugares comuns quando
se refere a monumentos de Paris pode ser explicado pela timidez evidenciada
no contacto com Natália, que lhe terá bloqueado o raciocínio. Acrescente-se
ainda que esta sua timidez perante a provocante investida de Natália pode
muito bem justificar a sua gaguez, a sua tremura na voz! Ou seja, Jean-Pierre
não apresenta sinais evidentes de poder ser o perigoso bombista italiano
disfarçado de um vulgar cidadão francês. Quanto
ao espanhol Pepe Diaz, também é estranho que ele se tenha expressado em
diversas línguas e não o tenha feito na língua materna. Mas isso pode ser
explicado pela nacionalidade dos interlocutores: o portador do embrulho seria
italiano e as pessoas com quem comunicou por telefone seriam francesas,
alemãs e inglesas. Quanto
às inúmeras chamadas feitas, elas podem ser justificadas com a simples
possibilidade do homem precisar de manter contacto com os seus parceiros de
negócios, clientes ou familiares; por outro lado, convém recordar que em 1974
ainda não havia telemóveis, mas existiam telefones de rede fixa colocados em
pontos mais discretos e privados do que cabines públicas, o que significa que
os assuntos tratados naquelas comunicações não tinham carácter sigiloso ou…
criminoso – até porque o espanhol usou um tom de voz elevado. Relativamente
à dimensão, peso e “plasticidade” do conteúdo do embrulho que ele esperava
com aparente ansiedade, bem como ao facto do seu portador envergar um casaco
de meia estação de golas levantadas em pleno Verão, tudo isso poderá ter as
explicações mais inocentes. E nem o facto de o espanhol se encontrar pela
primeira vez em Lisboa o faz mais suspeito do que os outros – até porque
sabemos que aquela é também a primeira vez de todos eles na capital do nosso
país. Os
comportamentos do francês e do espanhol, mesmo não denunciando indícios
objectivos de que qualquer um deles seria o terrível bombista especializado
em disfarces e falsificações que as autoridades policiais portuguesas
procuravam afincadamente, determinariam que fossem tomadas fortes medidas
preventivas. Estas passariam, pelo menos, por uma vigilância apertada aos
movimentos daqueles suspeitos – até porque estava em causa a segurança
pública. Em
vez disso, Smaluco decidiu dar-lhes liberdade de acção após concluir um tipo
de investigação absurda e inconsequente, onde acabou por envolver uma pessoa
estranha à estrutura policial, o que contraria os mais elementares princípios
que orientam a conduta dos agentes de segurança. Talvez
seja por atitudes desta natureza que normalmente o detective é chamado a
investigar apenas casos menores, como pequenos delitos. Mas
se é verdade que Smaluco não esteve nada bem na forma como desenvolveu a
“investigação” dos suspeitos francês e espanhol, esteve bastante pior quando
foi incapaz de perceber os sinais que o judeu deixou transparecer de que se
fazia passar por quem não era. Ou seja, se Jean-Pierre e Pepe Diaz podiam
possuir as identidades e as nacionalidades com que se apresentaram na
fronteira e no hotel, Aki Abdul não! Havia nele disfarce, falsificação. Podemos
encontrar as mais variadas razões para explicar o facto de o alegado judeu
afirmar que Telavive é uma cidade desprovida de interesses culturais
relevantes, ao mesmo tempo que invoca o seu elevado significado histórico e
religioso, mas a verdade é que tal afirmação revela um profundo
desconhecimento sobre aquela que é a segunda capital de Israel. Na
realidade, Telavive é uma cidade jovem, fundada em 1909, pelo que não possui
qualquer história religiosa significativa, ao contrário do que se passa com a
sua importância no contexto cultural: Telavive possui uma enorme pujança no
domínio das artes. E foi isso que fez Natália rir à gargalhada, porque, sendo
actriz, é natural que soubesse da grandeza cultural que aquela cidade
encerra. Também
é verdade que podemos aduzir inúmeras explicações para a sujidade escondida
nas unhas de Aki Abdul, para além desta poder ser explicada pelo manuseamento
longo e reiterado de pólvora sem luvas de protecção. E
podemos ainda justificar o verniz (transparente!) nas unhas de um homem como
uma moda da época, embora seja conveniente não esquecer que essa era uma moda
no Ocidente em meados dos anos de 1970, cuja prática seria muito pouco
provável num cidadão judeu, por razões culturais. Mas… Pode
haver de facto muitas justificações para que tudo o que atrás se enuncia como
indícios de suspeitas recaia sobre Aki Abdul, mas de certeza que só há uma
explicação para ele proceder à leitura de escritos em hebraico, fazendo-o da
esquerda para a direita: fingir ser o que não é! Como
todos sabemos, a leitura dos caracteres hebraicos faz-se no sentido da
direita para a esquerda. E foi nesse sentido que Natália seguiu o dedo do
homem quando este prosseguia as linhas do jornal. Mas
Natália estava de frente para o suspeito. Logo, ele estava a movimentar o dedo
da esquerda para a direita, como se faz na leitura da escrita ocidental! Ou
seja, ele estava a fingir que lia, porque não sabe ler escrita hebraica…
porque não é judeu! Na
verdade, dos três suspeitos, só ele apresenta indícios claros e concretos de
ser o perigoso bombista italiano que foi surpreendido pelo Comando
Operacional do Continente (COPCON, estrutura militar criada pelo Movimento
das Forças Armadas, comandada pelo líder operacional da Revolução de 25 de
Abril de 1974, Otelo Saraiva de Carvalho) com uma quantidade apreciável de
explosivos nas imediações ao Palácio de Belém. |
© DANIEL FALCÃO |
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