Autor

Inspector Fidalgo

 

Data

26 de Outubro de 2008

 

Secção

Policiário [901]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2007/2008

Prova nº 8

 

Publicação

Público

 

 

Solução de:

O INSP. FIDALGO E A MORTE NA AJUDA

Inspector Fidalgo

 

A vizinha esteve em permanente plantão e tomou nota de todos os movimentos em redor. Por isso, não lhe poderia escapar qualquer aproximação de um estranho, nomeadamente no período em que o cão não esteve por lá, ou seja, entre as 14 e as 16 horas, mais coisa, menos coisa, intervalo em que ela mesma assinala que o filho da vítima lá foi buscar e levar o cão.

Face às suas próprias afirmações, ninguém poderia entrar ou sair sem ela ver. Viu, inclusivamente, o Januário bater à porta e não obter resposta, deixando uma nota por baixo da porta.

Não havendo qualquer indício de coligação entre a vizinha, o Januário ou o filho da vítima, o depoimento dela iliba completamente o visitante, apesar de ele também ter algumas lacunas no seu depoimento, nomeadamente ao afirmar não estranhar o cão não estar lá fora, no quintal, porque às vezes o metiam lá dentro; mas também não estranhar que ele não lhe ladrasse lá de dentro (se lá estivesse) quando bateu à porta; ou afirmar que a campainha não tocava, sem explicitar o porquê:

– Seria por saber que não havia corrente eléctrica?

– Ou seria por a campainha estar pendente, presa pelos fios e presumir que não funcionava?

– Ou seria ainda por ter conhecimento de que ela nunca tocava?

Apesar dessas falhas, fosse ele mentiroso ou apenas distraído, isso não faz dele criminoso e, neste caso, sem qualquer oportunidade para cometer o crime, debaixo da vigilância cerrada da vizinha atenta.

O Januário está, pois, fora da lista dos suspeitos.

A vizinha curiosa é a suspeita seguinte.

Teve oportunidade e tempo bastante para cometer o crime.

Assistiu à partida do cão e logo aí teve a sua oportunidade. Poderia descer, bater à porta, esperar que o idoso lhe franqueasse o acesso e depois, por qualquer factor que não nos é dito, consumar o atentado contra a sua vida. Como não temos descrição da sua compleição física temos de aceitar essa probabilidade.

Só que o filho da vítima afirma que foi devolver o cão depois das 15h45 e entrou para dizer ao pai que o animal já lá estava e que não devia brincar com ele. Portanto, pela afirmação do filho, o pai estava vivo àquela hora.

Para poder cometer o crime após essa hora, outros obstáculos havia:

– Em primeiro lugar, o cão já lá estava, o que, não sendo um impedimento absoluto (não sabemos que relação tem essa vizinha com ele, até podia ser pacífica), certamente ele reagiria quando fosse para ela sair, porque qualquer cão detecta o mal feito aos seus donos.

– Em segundo lugar, e isso é determinante, o filho da vítima afirma que deixou o pai a temperar uns bifes para o jantar, antes das 16 horas (hora a que refere já estar no emprego, certamente confirmado posteriormente). Mas a descrição feita pelo Inspector Fidalgo depois das 20 horas indica que há dois bifes prontos para cozinhar, com lâminas de alho, sal grosso e aparas de folha de louro, o que é incompatível com tantas horas de exposição, sobretudo no que se refere ao sal grosso, que, em contacto com a carne, já não poderia ser visível. Ora, mesmo que a vizinha cometesse o crime apenas alguns minutos antes da chegada do filho da vítima e fosse ela a reforçar o sal nos bifes (embora esse acto não fizesse nenhum sentido), o tempo decorrido até à chegada do Inspector (o filho chega, vê o que se passa, chama a polícia, espera por ela, vai ajudar a agarrar o cão, espera pelo Inspector…) era mais que suficiente para que o sal desaparecesse de cima dos bifes.

Portanto, a hipótese da vizinha ser a responsável pelo crime cai por terra, também por não ser imaginável que um filho, ao ver o pai morto inesperadamente e de forma violenta fosse, ele mesmo, preocupar-se com o tempero de uns bifes, minutos antes da chegada do Inspector.

A vizinha é, assim, completamente ilibada.

Afastada a hipótese de alguém exterior ter ido cometer o crime, pela vigilância da vizinha e de esta o cometer, restam-nos as hipóteses do suicídio, do acidente ou do homicídio cometido pelo filho.

Relativamente ao suicídio e ao acidente, a natureza e a localização do ferimento, bem como o instrumento agressor não são compatíveis.

O bastão tinha sangue e cabelos numa ponta, algumas crateras a meio, parecendo marcas dos dentes de cão. Aventou-se a hipótese de o sangue e cabelos poderem ser do ferimento do cão, mas nem ele entrou em casa nem o velho veio à rua depois do filho sair de manhã, como confirmam as várias fontes e por isso, em momento algum o bastão e o cão se cruzaram naquele dia. O próprio filho refere que entrou em casa apenas para dizer ao pai que o cão já lá estava e recomendar que não brincasse com ele, e mais tarde diz que, ao chegar do trabalho, ficou alguns instantes com o Rex a ver se estava tudo bem e depois entrou… As marcas certamente eram dos dentes do cão, mas feitas anteriormente nas brincadeiras que os vizinhos descrevem. O sangue e os cabelos foram provocados pelo ataque à vítima.

Para além de não existirem quaisquer indicadores de suicídio, a localização do ferimento, na zona da nuca, inviabiliza essa hipótese, tanto mais que o bastão aparece num canto da cozinha e não junto da mão da vítima. A hipótese de acidente padece dos mesmos constrangimentos. Não é crível que alguém bata acidentalmente contra um bastão num extremo de uma cozinha e vá cair de bruços a alguma distância. Poderia, isso sim, ter escorregado e caído com violência com a nuca sobre o bastão, mas nunca o corpo ficaria de bruços e muito menos o bastão a tal distância.

Resta-nos o homicídio, praticado pelo filho.

Ele é o único que tem a oportunidade e comete alguns deslizes comprometedores.

A casa tem abastecimento de água de um furo accionado electricamente. Se a corrente esteve interrompida, o motor não pôde funcionar. No caso, haveria um depósito com alguma capacidade porque o filho afirma que se zangou com o pai por este estar a regar o jardim (por isso esgotar a água do reservatório), ao ponto de ele só poder tomar um duche e nem para lavar os dentes sobrar!

A conclusão é de que não tinham ligação à rede pública (terão passado por muitas dificuldades há uns anos, como refere a vizinha), pois, nesse caso, não havendo água do furo, haveria da rede.

Com a água completamente esgotada (nem um simples copo para lavar os dentes), a pergunta a fazer é qual a origem da que se encontra dentro da panela que aguarda as batatas. O velho não veio mais à rua, o filho não levou nenhuma vasilha quando lá foi e a luz eléctrica só regressou após as 20 horas, ou seja, mais ou menos pela altura em que o filho diz ter encontrado o pai morto. Portanto, apenas ele poderia ter enchido a panela, depois do regresso da luz.

A mesma situação com o tempero dos bifes, que apenas foi feito naquele momento e já como encenação do que ia ser exibido à polícia.

Depois, apenas ao seu dono principal, digamos assim, o cão perdoaria ter feito mal ao seu outro dono, apesar de estar muito excitado – ao ponto de ter sido difícil prendê-lo com mais vigor para permitir a entrada da polícia.

A conclusão é, pois, óbvia: o filho eliminou o próprio pai.

© DANIEL FALCÃO