Autor

J. Nunes

 

Data

28 de Novembro de 1993

 

Secção

Policiário [126]

 

Competição

Supertorneio Policiário 1993

Prova nº 7

 

Publicação

Público

 

 

Solução de:

O CASO DO EMPRESÁRIO ASSASSINADO

J. Nunes

 

– Espero que tenhas uma boa explicação para a situação em que acabaste de me meter – resmungou Carlos, enquanto nos dirigíamos para casa.

– Admito que possa ter-me excedido, mas não caibo em mim de contente. Afinal, para quem, como eu, está habituado a resolver crimes de papel, a resolução deste caso, real, é no mínimo motivo de contentamento – observou Heitor, exibindo um discreto, e quase malicioso, sorriso.

– Falas, falas, porém, nada dizes – criticou o tio.

O nevoeiro conferia ao momento um aspecto ainda mais sombrio do que a isolada estrada, rasgada por entre pinhais, em que viajávamos. A chuva, agora mais intensa, abatia-se sobre o velho carro que nos levava a casa, e este, como que querendo escutar, reduziu a velocidade.

– Por algum sítio havemos de começar – observou Heitor. Uma vez que não encontraste pegadas no exterior ou lama no interior da casa e dado que choveu antes do crime, então ou o criminoso já se encontrava dentro de casa, ou tinha asas. Logo, a menos que o homem se tenha suicidado e escondido a arma posteriormente, o assassino é um dos da casa.

– Mas, tendo todos eles um álibi, certamente que isso é impossível. A não ser que todos tenham tomado parte no crime – comentei.

– Foi a primeira ideia que me ocorreu. Mas certamente que três pessoas escolheriam um álibi bem melhor do que um jogo de cartas e, se possível, jogá-lo-iam bem longe do escritório. Por outro lado, o sr. Alberto quase depende desta família. É velho e solteiro e muito provavelmente não tem mais familiares. Vive e come ali desde pequeno. Ainda que o patrão não lhe pagasse, certamente não morderia a mão que o alimentava e dava tecto.

– Mas, enquanto no escritório era disparado o tiro mortal, os restantes ocupantes da casa encontravam-se na biblioteca – exclamou, autoritário, Carlos.

– Não necessariamente! – Heitor riu-se, certo de causar espanto. — O que se ouviu na biblioteca foi um som parecido com um tiro. Eduardo Costa havia sido assassinado alguns minutos antes… pela sua mulher.

Também precisámos de alguns minutos para poder aceitar esta solução, até agora impensável.

– Estás seguro do que dizes? – perguntou Carlos.

– Há um ponto em que os três intervenientes neste drama estão em aparente contradição. Trata-se do cheiro que sentiram quando entraram no escritório. A cozinheira sentiu um cheiro azedo. O mordomo não foi sensível a esse cheiro, possivelmente porque tem estado adoentado, devido ao mau tempo. Resta-nos portanto duas hipóteses, ou os primeiros mentem, ou a sra. Clara mente, pretendendo encobrir algo. Fui pela segunda. Até porque a sra Rosa, sendo cozinheira, deve ser um pouco mais sensível quanto ao olfacto do que os restantes. Quando me apercebi da importância do cheiro no escritório, tentei encontrar um produto, de uso doméstico, capaz de o produzir…

– Vinagre! – sugeri.

Efectivamente, creio que foi vinagre. O problema é que não sabia como encaixá-lo no resto do “puzzle”. Tinha que haver um motivo muito especial para utilizar vinagre ou qualquer outro tipo de ácido. Lembrei-me então de que, se um dispositivo produzisse um som similar a um tiro, toda a minha teoria iria por água abaixo. Daí a eventual necessidade de o vinagre para uma reacção química em que possivelmente seria libertado gás, que sob pressão faria rebentar uma tampa Não podia estar muito afastado da verdade. Especialmente porque a sra. Clara trabalha num laboratório de análises a vinhos e certamente não lhe serão completamente desconhecidas as propriedades do vinho azedo, que é afinal de contas o vinagre.

– Para que tudo bata certo, falta saber qual o outro reagente que se misturou com o vinagre – disse eu.

– E foi precisamente isso que me deu mais trabalho a descobrir. Quando eu era pequeno, uma das minhas brincadeiras preferidas era misturar líquidos, pós, cremes, enfim, tudo o que pudesse ser misturado, de molde a fazer efervescência, fumo, etc. Uma das reacçõess mais espectaculares é a do bicarbonato de sódio com o vinagre. O bicarbonato de sódio é muito utilizado na cozedura de legumes. Estes cozem mais depressa e ficam com umas cores mais vivas. Há, porém, quem diga que os legumes assim cozinhados perdem o gosto e tornam-se mais rijos. Foi ao lembrar-me que a sra. Rosa aprendeu a cozinhar num restaurante, onde os olhos também comem e o tempo escasseia, que decidi testar se ela usava esse produto. Quando o sr. Alberto me serviu os legumes, percebi imediatamente que não me enganara. Talvez por isso eu fiasse um pouco eufórico.

– E qual a relação com os outros achados? – inquiriu Carlos.

– A esponja é certamente proveniente da almofada usada para abafar o som do tiro fatal – disse Heitor, antes de eu o interromper.

– E a cortiça? Suponho que não seja originária do pavimento da sala. O verniz usado no “parquet” mostrá-lo-ia facilmente…

– A cortiça é um fragmento da rolha usada para tapar a garrafa onde foi feita a reacção. Mais interessante é a janela da sala, que, pela tua descrição, foi totalmente arrasada. Este aspecto contribuiu para que a minha teoria fosse confirmada.

– Como assim? – interroguei.

– Se o assassino tivesse necessidade de forçar a entrada, porque não pertence à casa, esforçar-se-ia por ser tão discreto quanto possível. Nunca optaria por derrubar a janela.

Por algum motivo, o inspector Carlos mostrava-se renitente quanto às explicações sintetizadas por Heitor. Limitava-se a acenar a cabeça, como quem não pode acreditar. O inspector Carlos falhou. Não por causa das pistas ou da falta delas, mas, sim, porque se deixou levar pelas emoções.

– Em resumo – prosseguiu Heitor, ao jeito de resenha –, o sr. Alberto leva uma chávena de chá ao sr. Eduardo. São, mais ou menos, 22h. Enquanto o sr. Alberto retorna à cozinha para devolver a loiça, a sra. Clara entra no escritório e mata o marido. O tiro não é ouvido porque a casa é muito grande e se encarrega de atenuar o fraco ruído da arma, já de si muito reduzido devido à almofada. A sra. Clara sai do escritório e aguarda a chegada do mordomo e da cozinheira à biblioteca. Pouco depois entra no escritório e, num local não visível, deixa uma garrafa com bastante bicarbonato de sódio, a que junta uma boa porção de vinagre e rapidamente rolha. Ela sabe que tem muito pouco tempo até que o gás assim produzido faça saltar a rolha, por isso, apressa-se a formar o álibi, e nada melhor do que fazê-lo à vista de todos. Dirige-se para a biblioteca e aí permanece até que o estrondo se faça ouvir. Por esta altura devem ser 22h30. Após algum tempo, a rolha cede à pressão do gás e ouve-se o falso tiro. A porta do escritório que dá para a biblioteca é arrombada, pois é aquela que se encontra mais perto. Ao deparar com o corpo do sr. Eduardo, a cozinheira quase desmaia, antes, porém, apercebe-se do cheiro a azedo. Já na cozinha, a sra. Clara toma a iniciativa de telefonar à polícia, com o intuito de fazê-lo do seu quarto. Deste modo, ela dispôs de tempo para regressar ao escritório e levar a garrafa de que pretendia desfazer-se. No seu quarto, para além de telefonar para a polícia, parte o vidro da sala de jantar para dar a impressão de que alguém entrou em casa.

– E como é que ela fez isso? – interpelou Carlos.

– Ah, por pouco que me escapava. Lembras-te da pedra? Se o assassino necessitasse de partir a janela para entrar, fá-lo-ia discretamente, já o disse. Se usasse uma pedra para esse efeito, seria preferível colocá-la suavemente no chão, de molde a não produzir qualquer ruído. No entanto, a pedra apareceu acerca de seis metros da casa. Portanto, admitindo que o intruso não se daria ao trabalho de percorrer essa distância para depositar a pedra, cheguei à conclusão de que a pedra teve que ser lançada do andar superior. Esta solução tem a particularidade de explicar por que a pedra, ao cair, saltou e deu origem à tal cavidade no chão.

– Continuo a não ver qualquer relação entre a pedra, a janela partida e a sra. Clara – insistiu Carlos.

– A sra. Clara atou a ponta de um cordel a uma pedra e atirou o conjunto assim formado contra a janela da sala. Recolheu então a pedra e atirou-a para longe. Deste modo fica explicada a razão por que a janela foi tão exageradamente quebrada. É muito possível que, para este fim, a sra. Clara tenha usado o rolo de cordel de cozinha que subitamente se gastou.

Todo aquele que ler este relato deve ficar com a sensação de que a sra. Clara planeou até ao último detalhe este homicídio. Certamente imaginá-la-á como uma pessoa cruel, desprovida dos mais fraternos sentimentos humanos. O meu colega propôs o contrário. O tempo viria a comprová-lo.

Afinal, tudo aconteceu porque a raiva acumulada de anos explodiu num trágico momento, deitando tudo a perder. A sra. Clara matou o marido num acesso de raiva. Mas, dotada de uma improvisação extraordinária e mercê de uma sorte incrível, conseguiu até à última iludir tudo e todos. Exceto ela própria.

A sra. Clara suicidou-se 12 dias depois da morte do seu marido. Um tiro na testa… a mesma arma. Ao lado, uma carta revelando todos os acontecimentos.

Heitor não falhou quase nada. Não previu o suicídio!

© DANIEL FALCÃO