Autor Data 10 de Maio de 1979 Secção Mistério... Policiário [216] Competição Torneio
“Detective Misterioso" Problema nº 6 Publicação Mundo de Aventuras [292] |
O “BASTÃO DE BREDORICO” Joe Sousa –
Os nomes nem sempre correspondem aos objectos que
os usam… – disse o professor em tom irónico. E depois de uma pausa. – Repare
nesta pulseira antiga: chamam-lhe «escrava»… E, no
entanto, entre o pulso da cativa e esta jóia havia
uma distância sem medida. O
«assistente» ouviu e não disse palavra. Mal deitou um olhar ao fragmento da
pulseira que o professor voltava entre os dedos. Tendo conseguido enfim
entrar naquele casarão onde o mestre se isolava ferozmente na companhia de
uma criada macróbia e surda, a sua atenção parecia ir toda para a observação
atenta do gabinete onde se encontravam. Era
uma sala mal iluminada, de boas dimensões mas exageradamente atulhada de
mobiliário, quadros, pilhas de livros, troféus arqueológicos – mesmo pelo chão
e debaixo das mesas. A única lâmpada, no tecto, não
era limpa há muito e os próprios reposteiros que cobriam as janelas cheiravam
a pó. Uma
«feira da ladra» doméstica, pensou o assistente, um museu desarrumado. Havia
uma estante envidraçada de dimensões descomunais, dois tamboretes estofados e
uma secretária antiga, servida por um cadeirão magnífico: o seu espaldar
forrado a coiro, rematava lá nas alturas por uma
águia de asas abertas, talhada em madeira. Ao longo das paredes, sucediam-se
várias mesas cheias de objectos históricos, ou pelo
menos antigos, retirados do sossego dos túmulos e da poeira dos sótãos… Saltavam
à vista pelo seu tamanho e pela sua insólita natureza, distinguindo-se das
cerâmicas rachadas e das pilhas de cartapácios, duas pedras de armas, um
bacinete medieval, três caveiras e um santinho de pedra roído pelos séculos. Quanto
ao resto – adagas, medalhões e adereços – havia de tudo. O
professor pousou a pulseira numa das mesas. Ergueu os olhos para o «assistente»
e perguntou em voz macia: –
Ainda não me disse porque veio tão cedo. Pedi-lhe a si e ao seu colega
Palmeira que me visitassem às 10 horas. Ora são ainda nove e meia… Devo
dizer-lhe que hesitei antes de abrir-lhe a porta. O
«assistente» esboçou um sorriso gelado, um arrepanho. –
Bom. Pensei que entretanto poderia dar uma vista de olhos à peça que o
professor trouxe da Espanha. Devo confessor que o Palmeira me confidenciou.
Parece que se trata do bastão de Bredorico, o autêntico.
–
Bredorico, O Estropiado… Andaluzia, Século VI… – corrigiu
o professor, brincando. – Quanto à possibilidade de ser o autêntico, quem
sabe? Estou ainda a estudar as inscrições. E,
dito isto, arrastou um dos tamboretes para junto da estante. –
Vou mostrar-lho, mas peço segredo absoluto. Descalçou
os sapatos de quarto que usava e, com esforço, subiu em meias para cima do estofo.
Esticou o braço e, do cimo da estante, do meio de um amontoado de papéis,
extraiu cuidadosamente uma espécie de ceptro metálico,
bastante oxidado, mas onde eram visíveis vários símbolos gravados. O
«assistente» tomou nas suas mãos a relíquia e lançou-lhe um olhar rápido e
brilhante. O professor desceu do seu efémero pedestal, arquejando.
Recuperando o ritmo cardíaco, ajustou os óculos ao nariz e pôs-se a esfregar
as mãos, à espera. –
Analise, analise… – era evidente a sua alegria interior. Mas
o «assistente» já tinha analisado o suficiente. A sua expressão tornou-se
tensa. O
professor voltou-lhe as costas e, descalço, com a descontracção
própria dos sábios, deu quatro ou cinco passos em direcção
à porta de entrada. –
Tenho no meu quarto os primeiros apontamentos que coligi sobre a
interpretação das… Não
acabou a frase porque, com a suavidade de um felino o «assistente» fora-lhe
no encalço e, tendo tirado do cinto um pesado martelo que o casaco encobria,
assentou-lhe uma violente pancada mesmo no alto da cabeça. Estão
a ver a cena: um pobre professor tranquilo e por detrás um assassino de braço
erguido, balanceando um golpe e desferindo-o com toda a força de um ombro
possante. Morte instantânea com esmagamento da estrutura óssea e funda
laceração da massa encefálica. Eis o motivo porque a
frase ficou em meio. Fulminado,
o infeliz dobrou os joelhos e desmoronou-se na carpete. Pausa curta. O
«assistente»-assassino pousou no chão o ceptro e o martelo e executou com rapidez uma série de actos evidentemente premeditados… Ergueu o cadáver nos
braços, transportou-o para junto da secretária ao fundo da sala e sentou-o no
respectivo trono. Arrumou-o na posição mais
natural: cotovelos apoiados nos braços da cadeira, as mãos sobre a mesa. Para
conseguir que o crânio se mantivesse apoiado no espaldar foi preciso puxar o
corpo um pouco à frente e flectir um tanto os
joelhos. A seguir foi buscar os sapatos de quarto que tinham ficado junto à estante
e, ajoelhando-se, enfiou-os nos pés do morto. Recuou
dois passos e observou a composição: pareceu-lhe bem. Mas
uma sensação de mal-estar e insegurança começava o invadi-lo. Aproximou-se
de novo. Pensou em acender o candeeiro da secretária, hesitou e acabou por
deixá-lo como estava. Depois, obedecendo a um impulso, estendeu a mão direita
para cerrar os olhos do morto. Já quando lhe tocava as pálpebras suspendeu o
gesto: era um pormenor inútil. Convinha ficar pelo essencial. Faltava
uma coisa, apenas: o martelo. Servindo-se de um lenço, esfregou
cuidadosamente o cabo de madeira de forma o apagar as impressões digitais.
Olhou em volta, pensativo, e então teve uma ideia que lhe pareceu soberba: a
estante. Era isso, lá em cima. Pôs-se
em bicos de pés e escondeu o martelo onde antes estivera o bastão de Bredorico, no meio da papelada. Então,
levando consigo o móbil do crime, abandonou a sala furtivamente. Às
dez horas o «assistente» Palmeira entreabriu a porta e meteu o pescoço: –
Dá licença, professor? A
fraca iluminação da sala impediu-o de tomar imediato conhecimento do que se
passara. Lá ao fundo, no extremo oposto, o professor olhava para o tecto, assombrado. Palmeira adiantou-se respeitosamente,
pisando macio, mas logo compreendeu o significado daquela mancha escura que empastava
a espessa cabeleira branca do mestre e alastrava até ao colarinho da camisa. –
Céus! – gritou, vencendo o terror que o paralisava. Uma
suspeita horrível cresceu-lhe no cérebro: o precioso bastão, seria que… Num gesto decidido trepou ao tamborete, mandando à fava
a integridade do estofo. Quase pendurado no alto da estante, rebuscou
febrilmente e, no sítio, acabou por achar um insólito e prosaico martelo de carpinteiro.
Então
nesse momento preciso, o «assistente»-assassino entrou
de novo na sala, de sobrancelha franzida: –
Que é isto? Que se passa aqui? Da
sua peanha de damasco o «assistente» Palmeira, gemeu,
desalentado: –
Roubaram a preciosidade, ó Pinto, e parece que mataram o professor. Mas quem?
Só eu e ele sabíamos do esconderijo… Pinto,
o «assistente»-assassino, mantinha a expressão
fechada, uma verdadeira máscara. Mas observava o seu colega que segurava ainda
pelo cabo o utensílio do crime. Mentalmente, esfregou as mãos de contente. O
pobre Palmeira acabou por apear-se do tamborete e, destroçado pelos
acontecimentos, procurou um pouco de amparo junto do colega. Como uma criança
abandonada apoiou-se nele e molhou-lhe o colete com as suas lágrimas sinceras. Na
ausência de outros suspeitos e conhecendo-se a identidade do criminoso,
pergunta-se: 1
– Qual o raciocínio que levaria um investigador arguto a incriminar o Pinto,
embora as aparências apontem para o Palmeira? 2
– Quais os erros que o criminoso cometeu ao executar o seu plano preconcebido?
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© DANIEL FALCÃO |
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