Autor Data 11 de Junho de 2000 Secção Policiário [465] Competição Prova nº 6 Publicação Público |
O TESTAMENTO K. O. Arlindo Severo tinha a
paixão das antiguidades: móveis, loiças, quadros, livros, documentos vários.
A sua casa era um museu em pequena escala, harmoniosamente arrumadas as obras
de arte, partilhado o espaço habitável com o indispensável mobiliário
funcional, este também da mais elevada qualidade e requinte. É certo que os substanciais
meios materiais de que dispunha lhe possibilitavam a satisfação do ‘hobby’,
mas um apurado gosto artístico e uma profunda formação cultural igualmente contribuíram,
e muito, para a constituição da invulgar colecção de preciosidades que
acumulara. E paciência… paciência para correr alfarrabistas e antiquários,
leilões e exposições! Uma sua prática muito de
enaltecer era não guardar só para si as obras de arte que ia adquirindo.
Sentia alegria em compartilhar com os outros o seu prazer em as possuir.
Claro que a sua casa não era um museuzinho de porta aberta aos entusiastas da
arte. Claro. Mas aos seus amigos sempre convidava para virem apreciar as
novas aquisições. E esses dias eram dias de
festa. Noites de cultura. Saraus de convívio e arte. Mas, amando tudo o que era
belo e artístico e precioso e antigo, Arlindo tinha uma predilecção, que não
escondia, pela documentação escrita. Livros, manuscritos, gravuras,
palimpsestos. E, nas prateleiras das suas
estantes, coabitavam as primeiras edições do Eça com as de Antero, Oliveira
Martins e Herculano. Muitos clássicos, nacionais e de outras línguas cultas.
Uma “Mensagem” luxuosamente encadernada. A “Peregrinação” na primeira
tiragem. Mas, antes e acima de tudo (e era muito esse tudo), a primeira
edição d’ “Os Lusíadas”. Nas paredes das suas salas,
exibiam-se telas de artistas de renome e gravuras de excelsos criadores. Para
quê dizer nomes, se isso só ia despertar a cobiça dos amantes da arte?! Nos armários, acumulavam-se
ordenadamente documentos de diferentes épocas e teor vário: manuscritos de
poetas e prosadores; documentos régios: pergaminhos e papiros registando
história. A todos estes materiais tão
diversos dedicava Arlindo uma profunda afeição e cada nova descoberta era
festejada como se… fosse a primeira. Foi assim que, uma noite,
convidou alguns amigos mais chegados para uma pequena recepção. Tinha
adquirido uma nova peça e ansiava por mostrá-la. Reunidos os amigos, não fez
‘suspense’. Mostrou logo o documento. Era um manuscrito do séc.
XVI. Um testamento. De papel branco, encorpado, margens bastante irregulares,
um pouco amarelecido pelo tempo. Escrito em letra clara, regular, miúda,
tinta um tanto esbatida. Rezava assim (e a transcrição faço-a eu, autor, em
linguagem actualizada na ortografia e na pontuação): ‘Aos doze dias do mês de
Outubro de 1582, eu, Gonçalo Ramires, filho de Ramiro de Almeida, natural de Mafra
e residente nesta cidade de Lisboa, dou público conhecimento das minhas
últimas vontades e das minhas derradeiras intenções. Em primeiro lugar, louvo ao
Senhor, que me deu uma vida longa e sem grandes cuidados. Assim, atribuo à
Confraria de Nossa Senhora do Rosário a propriedade e a posse das minhas
terras de Riba-Tejo. Ao meu mordomo, António,
que sempre me serviu com lealdade e dedicação, lego cem moedas de ouro. O remanescente dos meus
bens deve ser dividido equitativamente pelos meus filhos, Pedro e Paulo, a
quem desejo que estimem sempre a herança e sigam o bom caminho de Deus. Que estes meus últimos
desejos sejam cumpridos e eu descanse em paz.’ Eram quatro os amigos na
reunião, para além do anfitrião. Todos revelavam na sua expressão o prazer de
manusearem documento tão antigo, tão valioso e de tão alto significado.
Passou ele de mão em mão, para que, com mais realismo, pudesse cada um
analisar os pormenores do escrito. De repente, um dos amigos, que atentamente
observava o documento, fez um esgar de surpresa e bradou: – Arlindo, este documento é
falso! – Falso? Falsou! – gritou
Arlindo Severo, espantado e fora de si. – Como pode ser falso um documento
como este?! Só se pede aos solucionistas
que dêem resposta à angustiada dúvida de Arlindo Severo, seleccionando a
única hipótese correcta das quatro que lhes são propostas: A – Naquele ano, como em
todos em que Portugal esteve sob domínio espanhol, os documentos legais eram
escritos em castelhano e não em português; B – O testamento não podia
ter sido redigido naquela data; C – Naquela época os
documentos oficiais não eram lavrados em papel mas em pergaminho; D – Naquele tempo ainda não
era conhecida a prática do testamento. |
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© DANIEL FALCÃO |
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