Autor Data 10 de Agosto de 1992 Secção Policiário [41] Publicação Público |
O INSPECTOR FIDALGO E O ZÉ “DESDENTADO” Luís Pessoa O Zé “Desdentado” era uma
figura carismática naquele bairro degradado da periferia de Lisboa. Toda a
gente o conhecia e sobretudo sabia-o um indivíduo calmo, pacato, divertido, amigo
do seu amigo, em suma, um bom homem. O inspector Fidalgo também
o conhecia de há muito. Dos tempos em que ambos andaram numa acção de limpeza
de droga dos putos daquela zona. Não quer dizer que a droga tivesse
desaparecido, mas que uma boa quantidade de jovens foi poupada, isso era
inegável… E daí vinha a estranheza de
que acusassem o Zé “Desdentado” de assalto a uma casa luxuosa do bairro
vizinho, que era domínio da fina flor da nossa sociedade. O inspector não acreditava
na história e, por isso, pôs-se em campo… – Não temos dúvidas de que
foi ele – esclareceu o colega encarregado da investigação. – Repara que tudo
vai direitinho ao homem. Não há nada a fazer… – Mas qual é a base? – Olha, o Zé é um tipo por
quem tens uma certa simpatia, tudo bem, mas tens de compreender que não devo
discutir o caso contigo. No entanto, sempre te digo que o homem foi apanhado
uma hora depois do assalto com dois charutos dos que havia em casa. E mais,
como se não bastasse, deu-se ao luxo de fumar um em casa do dr. Serpa,
refastelado num sofá, tendo deixado cinza no chão e, pior que isso, deixou o
resto do charuto no cinzeiro, ou porque se esqueceu ou porque teve de “cavar”
um pouco à pressa. Um tipo como o Zé “Desdentado” a fumar charutos de quatro
ou cinco contos, na maior? Onde é que ele os foi buscar? Explica-me! – Mas isso não prova nada.
O que é que ele diz? – Ora, o costume. Que um
tipo que ele não conhece de lado nenhum lhos ofereceu. – Posso ver a ponta do
charuto que apanhaste em casa do doutor? – Está aqui. O inspector olhou o resto
do charuto, colocado dentro de um saco de plástico transparente, e reparou
que já era bastante pequena, o que sugeria que o fumador estivera muito
entretido a consumi-lo… Na base notavam-se as marcas dos dentes de quem o
saboreara com evidente prazer, mordendo-o com certa violência… Aquilo fez-lhe
lembrar um velho anúncio que passava na televisão há muitos anos e que
mostrava “um artista português” que tinha uns dentes fabulosos e segurava uma
cadeira com eles… “Palavras para quê?”, dizia o anúncio a uma marca de
dentífrico. E, de facto… A – O Zé “Desdentado” nunca
poderia ser o responsável pelo assalto, se a prova era o resto do charuto
deixado no local. B – O Zé “Desdentado” não
tinha dinheiro para comprar charutos daqueles e portanto roubou-os da casa do
doutor. C – O Zé “Desdentado”
abusou da sorte, porque não tinha nada de estar a fumar, descansado, na casa
roubada e muito menos deixar o resto do charuto. D – Claro que só podia ser
o Zé “Desdentado”, não tanto pelo roubo em si, mas para experimentar o prazer
de fumar bons charutos. |
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© DANIEL FALCÃO |
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