Autor Data 4 de Março de 2012 Secção Policiário [1074] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2012 Prova nº 2 (Parte I) Publicação Público |
O ALVES, EMIGRANTE OBRIGATÓRIO Lumape O
Alves deitou o olhar pela planície e até onde a vista alcançava, no horizonte
mais profundo, só via aquela cor amarela de secura. O
gado vagueava à procura de qualquer sinal verde, que não havia. A
seca já durava há muitos meses e não dava sinais de retroceder. As reservas
alimentares que guardara para os meses de Verão, quando os pastos
desaparecessem debaixo do sol abrasador, já estavam em vias de terminar. A
crise agudizava-se e a fome parecia inevitável, tanto mais que no céu imenso,
nem rasto de nuvens. Alves
desesperava. Do
banco, onde era cliente há décadas, só vinha indiferença quanto à sua
situação. De lá, só cartas de ameaças de execução, de penhoras e de
tribunais. A última, recebida no dia 21, dava-lhe 15 dias para regularizar
uma importância elevada, completamente fora do seu alcance. O
Alves já nem tinha cara para aparecer aos seus outros credores, ao merceeiro,
ao padeiro, ao Manuel das rações, onde tinha contas avultadas por saldar. Não
que algum deles o afrontasse com as dívidas, porque tinha junto deles o
crédito que uma seriedade muito antiga cimentara, já desde os tempos do pai,
também ele um homem apegado à terra e aos animais, que sempre cumprira a sua
palavra. A sua palavra, que por ali não era preciso papel assinado, excepto para os bancos, mas esses não faziam parte da
terra, eram organismos estranhos. Do
governo, promessas e mais promessas, mas ajuda real, nem vê-la. Os homens do
governo falavam em dar valor à palavra dada, mas prometiam tudo, até perante
as câmaras de televisão, mas logo faziam o seu contrário, com o desprezo
próprio dos incapazes. Apesar
de tudo, considerava-se um homem de sorte, porque não tinha família, ainda
podia dar outros rumos à sua vida, mas pensava sempre nos seus vizinhos, com
problemas iguais aos seus e com bocas, muitas bocas para alimentar em casa. A
esses o Alves tentava dar uma ajuda, quando podia. Valendo-se do seu nome,
conseguiu um pouco mais de crédito no merceeiro e produtos indispensáveis
para os putos dos seus vizinhos, que rondavam perigosamente a fome. Mas,
a verdade era cruel. A
chuva teimava em não aparecer. Os pastos estavam secos e mortos. As rações de
reserva estavam no fim. As contas acumulavam-se e o banco fazia o cerco
final. A vergonha fazia a sua parte e já não tinha cara para confrontar os
seus fornecedores. Restava-lhe
vender o gado que ainda resistia, praticamente a qualquer preço e lançar-se
na aventura, emigrando. As terras, essas ninguém as queria, por ali não
estavam planeadas auto-estradas nem urbanizações.
Restava abandoná-las à sua sorte, deixar o mato tomá-las e um dia… talvez
regressar às origens e retomar o que sempre fez e sempre quis fazer. A
venda do gado e das máquinas chegava para liquidar as dívidas e ainda daria
para o bilhete, só de ida. Chegou
o dia final. Da
soleira da porta, observava o movimento dos camiões transportando o “seu”
gado e seguia a trajectória até a perder no
horizonte. Com a partida, seguia uma parte dele, com cada animal, com cada
camião. Do
aparelho de rádio de um dos camiões, ouviu-se o sinal horário. Era meio-dia
certo, o locutor debitava as notícias, a ritmo martelado, certeiro. Lembrava
que era dia de “são senhorio” e reproduzia com veemência as afirmações de
governantes a convidarem quem estivesse mal a mudar-se, a procurar na
emigração o que não tinha cá! Sorriu
para não chorar. Não
lhe restava mais nada. Correcto e empenhado, como
sempre fora, discreto e trabalhador, certamente que sentia que o seu lugar
era aqui, onde gostava de estar e onde pretendia dar o seu contributo para
melhorar as coisas. Tinha terras, tinha gado, tinha vontade e querer, só não
tinha quem lhe desse a mão na adversidade climatérica. Nesse
dia, uma grande parte do seu mundo desabou, mais ainda quando, pela tarde,
entrou no banco com o dinheiro para pagar a dívida, precisamente em cima do
prazo que lhe foi concedido. A
venda dessa parte do seu mundo permitiu-lhe sair de cabeça levantada, pagar
aos seus credores e comprar o bilhete, só de ida, para um local distante,
onde durante alguns meses teria trabalho assegurado, com excelentes
condições, arranjado por um indivíduo que andava à procura de gente
trabalhadora, persistente, honesta e capaz, tudo atributos que o Alves sabia
possuir. Aquilo que mais o entusiasmou, para além de poder ter trabalho e
ganhar algum dinheiro, melhorando a sua situação, foi ouvir da sua boca que
ia ter participação activa e ficar ligado aos
acabamentos de grandes obras das Olimpíadas que iam ocorrer poucos meses
depois, algures no mundo. O
Alves não voltou a ser visto pela planície e as suas terras, se ainda são
dele, estão ao abandono. Também não consta que algures no cabo do mundo tenha
ficado marca de um tal Alves, português emigrado por obrigação, em algum
pilar de estádio ou piscina olímpica, mas a vida continuou, os dias foram-se
sucedendo e a chuva acabou por cair e fazer brotar o pasto que já não tinha
quem o comesse… Fala-se,
sem confirmação, que o Alves vagueia pelo mundo, que foi enganado por
promessas vãs, que nunca mais conseguiu reencontrar o caminho para casa, mas
provavelmente o que aconteceu foi que descobriu um novo lar, junto de pessoas
mais honestas e solidárias. A
verdade, nunca a saberemos toda. Ninguém sabe a verdade toda! Ah!
Os governantes que aconselharam a emigração aos seus cidadãos, já ninguém se
lembra deles, mas as marcas ficaram, irremediavelmente, na pobreza e miséria
que deixaram atrás de si, como um sulco profundo que não consegue cicatrizar. |
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© DANIEL FALCÃO |
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