Autor

Marvel

 

Data

20 de Janeiro de 1989

 

Secção

O Detective [64]

 

Competição

2ª Supertaça Policiária - Cidade de Almada

Problema nº 8

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

IMPREVISTOS DE UM ASSALTO

Marvel

 

O indivíduo espreitou primeiro a escada. O problema só poderia surgir dali, já que o ascensor ficava distante. Tudo parecia calmo. Avançou, então, e examinou o escritório pela porta envidraçada. Como calculara. Só as duas moças, uma ao balcão, desprovido de vidros intermediários, e a outra mais ao fundo, sentada a uma secretária, dactilografando serviço disposto. Abriu o saco de desporto de cor neutra que levava a tiracolo e apoderou-se de uma meia negra que enfiou na cabeça. Da mesma proveniência, surgiu uma espingarda de canos serrados.

A sua presença só foi notada quando rosnou em voz dura, baixa. Uns segundos bem úteis a pesar no seu activo.

– Isto é um assalto! Calma, e ninguém se magoa! Tu, menina, conserva as mãos no balcão. Quanto a ti, lourinha, dá-me um daqueles sacos. Repito que, se forem espertas, tudo bem. Vá lá! Rápido!

A rapariga da máquina avançou, trémula. Entregando-lhe o saco. A outra parecia petrificada, as mãos espalmadas no balcão, como lhe fora ordenado.

– Não tentem nada! Se me aparece alguém pela frente, eu volto e vocês vão ver o que é ser refém nas mãos dum gajo desesperado!…

 

Margarida Amaral tentava alinhar palavras que refletissem a cena vivida e, ao mesmo tempo, combater o nervosismo que a assoberbava.

– Os dois homens da segurança, momentos antes, tinham entregue os sacos habituais, um com documentos, o outro com o valor da féria do pessoal. Não usamos o sistema de cheques…

– Esses documentos, eram importantes?

– Só para o andamento do serviço. Nem sequer Insubstituíveis.

– E depois?

– Recebi-os, pousei-os a meu lado, que o sr. Mendes, o chefe de escritório, não tardaria a vir buscá-los, e assinei o recibo da entrega. Eles largaram-nos uns piropos, a mim e à Olga, e foram-se embora. Depois, não sei se passados segundos se séculos, o bandido apareceu. Mandou a Olga dar-lhe o saco. Eu… eu não sei o que faria se me tivesse mandado a mim!… Acho que não teria a coragem dela…

A aludida não se mostrava à altura do elogio que lhe era feito.

Encolhia-se no amplo sofá que ocupava, como que tentando identificar-se com a decoração.

– Foi uma atitude astuta e corajosa, menina, se bem que não a aconselhemos – pronunciou o investigador, afável. – A nossa prioridade é a segurança do cidadão, O que a levou a fazer o que fez?

– Valha-me Deus, se eu própria ainda não sei!… Quando me levantei para lhe dar o saco, ia disposta a dar-lhe as jóias da coroa britânica, se fosse caso disso, aterrada como estava!… Depois… não sei, deu-me para aquilo…

– Mas, os sacos não eram diferentes?

– Não, mas compreendo o que quer dizer. Um era nitidamente mais pesado devido aos trocos em moeda que continha. Atraída pelas chalaças dos rapazes da segurança, não deixei de notar que Margarida, ao erguer um deles, fez um esforço suplementar bem claro.

– Entendo! Para o assaltante, ambos os sacos continham dinheiro, não se tendo apoderado dos dois face às suas dimensões, já que o peso e o volume dificultar-lhe-ia a fuga. Mas você sabia a verdade e entregou-lhe o saco sem valor. Admirável menina!

Olga quase prorrompeu em choro:

– E se ele vem a saber que o enganei? Há-de querer vingar-se, fazer-me uma espera em alguma esquina…

– Não pense nisso, afinal, o erro foi dele, que se limitou a exigir-lhe “um daqueles sacos”. Não foi?

– Foi, ouvi bem – interveio Margarida, apertando, encorajadora, o braço da colega. – Ele, a esta hora, até é capaz de pensar, cheio de raiva, que os sacos só tinham papelada.

– Entregues por segurança? – objectou Olga, retraindo-se ainda mais.

O agente estudava com cuidado o problema surgido.

– Não creio que deva preocupar-se – disse. – A experiência que tenho não aponta para aí. De qualquer maneira vamos levá-la a casa e…

– Não vale a pena. O meu pai vem buscar-me.

– Com efeito, e apenas para sua tranquilidade de espírito, conviria que não andasse sozinha de noite, por uns tempos. Mas volto a insistir no que me diz a experiência. Não vai acontecer nada. Este tipo de marginais é assim. Falhado um golpe, muito bem, tenta outro.

O dr. Meireles, administrador da empresa assaltada sem êxito, aproveitou para abraçar Olga pelos ombros:

– Foi um rasgo exemplar de dedicação que não será esquecido, o seu, querida Olga. Esta administração saberá considerá-la; asseguro-lhe, porém, com veemência, que preferíamos perder o valor envolvido a pôr em risco um só cabelo seu.

Nas costas do homem da Judiciária ouviu-se um murmúrio incógnito:

– É bem de romance de faca e alguidar! Pois se o roubo estaria coberto pelo seguro…

 

Eram perto de 19 horas Tempo frio, noite já cerrada. O guarda Tavares, em sequência da sua patrulha de rotina, penetrou no jardim frondoso, glosado amiúde pelos casos de delinquência de que era teatro assim que a noite descia.

Não gostava da ronda na zona, menos pelo perigo que corria que pelo tipo de intervenções que se via compelido a praticar. Tudo rufias de pouca idade, atirados para o crime por razões geralmente presas a falta de protecção social. Custava-lhe meter na prisão, a acamaradar com criminosos e malfeitores empedernidos, garotos a quem a maioria ainda não pesava.

Ouviu, de súbito, rumores de briga. Pôs a mão no cacetete, sem grandes pressas. O costume. Procurou orientar-se. Os rumores aumentaram, convertidos em gritos abafados que lhe deram o rumo procurado. Algumas palavras ouviam-se: “Cabra!”, “…tornares a fazer-te esperta!”, “…ver-te noutra!”, roufenhas e entrecortadas.

Estugou a passada. A pecha usual das lâmpadas fundidas dos candeeiros públicos atrapalhava-o, mas acabou por vislumbrar um vulto caído, agarrado a uma árvore, e outro, uma mulher, a segurar com ambas as mãos a cabeça.

– Que se passa aqui?

– Atacaram-nos… fomos atacados!… – A informação, balbuciante, veio da personagem por terra. – Vínhamos a passar e… olhe, puseram-se a bater-nos… vinham de todos os lados!…

– Eram muitos?

– Não sabemos… Três, quatro… Queriam vingar-se dela por causa daquilo no escritório… A gente não esperava…

– Estão feridas?

– Atiraram-me contra a árvore… a cabeça… A ela, também deram…

O guarda falava com frases curtas e eficientes através do “walkie-talkie”.

– Calma, não tarda a ambulância. Apanharemos essa canalha. Sei de que caso se trata.

Sentada na relva, a rapariga chorava agora livremente, convulsivamente.

 

– Vão ver três indivíduos. Examinem-nos com atenção, levem o tempo que for preciso. Eles não sabem que estão a ser observados se bem que calculem. Estejam à vossa vontade. Qualquer semelhança com o assaltante ou agressores, por muito vaga que lhes pareça, não hesitem em apontá-la. Estejam à vontade, repito. Não se sintam pressionados pró ou contra, mas lembrem-se que simples suspeitas servem para começar. Entendido?

– Não sei… – proferiu Margarida, indecisa. – “Ele” era como tantos outros, vestia como tantos outros… E tinha a meia na cabeça…

– Lá, no jardim, estava escuro – objectou, também, Mário Antunes, o acompanhante de Olga. Apresentava alguns arranhões nas faces. Mais grave era a ferida no occipital, suturada com sete pontos. – Só acho que pareciam tipos novos, nada pecos em arrear…

Olga limitou-se a encolher os ombros, corroborante. Exibia hematomas nas faces, um dos quais começava a arroxear o olho esquerdo.

Os três rapazolas tinham em comum a idade, o ar acanalhado e os olhos vítreos, que sugeriam a ingestão recente de álcool ou/e o consumo regular de entorpecentes. Diferiam um pouco na altura e no peso, havendo que um deles se destacava ainda pelo semblante marcado por ferimentos donde uma ou outra gota de sangue pingava ainda.

As raparigas abanaram as cabeças, resignadamente. Mário Antunes designou o que tinha a cara ferida:

– Não é por nada, mas eu disse-vos que lutei com um ou mais deles…

– Identifica algum?

– Não, isso não. Mas como aquele está como quem apanhou…

O agente acenou com a cabeça.

– Não querem ver melhor, mais demoradamente?

– Eu acho que o maior não era – disse Margarida, não sem alguma hesitação. – Mas, enfim, podia ser…

– Muito bem, vamos ficar por aqui. É possível que voltemos a convocá-los. Você, menina Olga, continue a fazer-se acompanhar, mas evitem locais ermos ou mal iluminados.

 

– Isto? Já disse, uns caras quiseram impingir-me uns pacotes para eu depois impingir a outros e como lhes dei a nega, arrearam-me. Não aparecessem estes amigos…

– Onde foi isso?

– Também já disse; ali nas Virtudes.

– O engraçado é que ninguém por ali tenha dado por zaragata alguma àquela hora.

– Havia de aproveitar-lhes muito dizer que sim – chasqueou o outro, imitado pelos companheiros. – Idas à judite, falatórios na vizinhança, alguma naifada à má fé… Veja-se o arraial de porrada que aqueles levaram…

Os três voltaram a gozar que nem nababos.

– Sim, estou a ver – proferiu o agente, compreensivo. – O vosso azar é que a questão horária não vos ajuda nada. Apanharam-vos na tasca da Bainharia, logo depois do ataque ao casal, tu com a cara num bolo.

– Foi na Cordoaria, não foi? Daí às Virtudes, destas à Bainharia, é um bafo de cú. Ou pensa que nos leva com duas tretas?

– Compreendo. Temos, portanto, que foste abordado e te propuseram um negócio ilícito que, cidadão impoluto como o teu cadastro largamente explica, recusaste com indignação de louvar, pelo que se entretiveram a cuidar-te da fachada. Nesse entrementes, e apesar das dúvidas que há pouco puseste no arrojo e solidariedade dos frequentadores das Virtudes, dois cavalheiros de brio tomaram a peito avançar decididamente para te arrancar à confecção de batata a murro em que fazias as vezes do referido tubérculo. Para cúmulo das coincidências, os providenciais salvadores eram teus velhos conhecidos de artes e hospedagens. Querem corrigir-me?

Os três entreolharam-se, procurando uma posição de unanimidade.

– Você está no gozo, mas daqui não leva nem mais pevide – redarguiu o porta-voz tacitamente nomeado. – Pois é, fomos à Bainharia acalmar com uns copos, e depois? Lá porque aqui o Chicória é dos tesos e não vai ao cruzes por qualquer dói-dói, você não nos trama com isso dos horários, está bem?

O agente observou-os com sarcasmo:

– Espertinhos, hem? É do que eu gosto, rapazes, de malta que aposta no refilanço. Mete-se-me na cabeça teimar, estão a ver? Retomemos a conversa. Pode ser do princípio?

 

PERGUNTA-SE:

1) – Quem projectou e praticou o assalto?

2) – Com base lógica e dedutiva em tudo o que é narrado no texto indique e justifique os pormenores que levam e concluir a decisão da resposta anterior.

3) – Quais os deslizes comprometedores de quem praticou o assalto que levaram (certamente) os investigadores a descobrirem todo o caso?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO