Autor Data 6 de Dezembro de 1992 Secção Policiário [75] Competição Prova nº 6 Publicação Público |
UM CASO A RECORDAR M. Constantino Há quem afirme, convicto,
que as histórias se contam em qualquer altura, os casos verídicos relatam-se
quando acontecem. No primeiro caso é a invenção que surge em qualquer
momento, no segundo a realidade presente. Sem discutir a coerência do exposto,
ninguém duvide da veracidade do presente relato: respeitem-se as recordações…
Quem recorda nunca está só. Comecei pelos problemas ou
enigmas policiários, acabei como elemento da Judiciária, após um curso
universitário e a passagem pela vida militar. Não me estava sair nada mal. A
prática objectiva e consciente, o entusiasmo e a intuição postos nos casos
que me saíam – como se de um problema policial ficcionado se tratasse – acabaram
por chamar a atenção dos superiores, determinando promoções e respeito. Em
todas as circunstâncias dar o melhor é um lema que sempre resulta: nem que
seja para satisfação própria. Naquele tempo, inícios do
ano de 1947, algures para os lados de Sesimbra, o local pouco importa, uma
moradia isolada, bem tratada… Quando chegámos, a GNR fazia guarda. Ninguém se
aproximara, o que se justificava, aliás, pela localização. O espectáculo que se me
deparou não era bonito, não senhor. O corpo era algo horrível de se observar:
de costas, a pele extremamente pálida, um branco pálido pouco comum, mãos
abertas, de dedos em leque, a parte superior do rosto, do nariz para cima,
parte da cabeça e cabelos, era carne dilacerada à mistura com sangue e o
escuro da pólvora; depois, dentes níveos, cerrados num rictos dir-se-ia
diabólico, lábios afastados e franzidos, como se um sorriso de morte os
aflorasse… Uma camisa um pouco larga, com monograma H.H., calças vulgares, o
pé direito descalço, o dedo mínimo ligeiramente arranhado. O sapato parecia
ter sido atirado descuidadamente para junto da varanda. Aos pés da vítima uma
espingarda de cano único, calibre 12, de cuja câmara extraí e voltei a colocar
um cartucho recentemente detonado, sem que os meus dedos deixassem ou
apagassem qualquer indício e sem alterar igualmente a posição da arma. O cesto junto da secretária
continha papéis rasgados, contas sem importância para o caso, restos de
cartas sem interesse, duas cartas meio rasgadas que a paciência me ajudou a
reconstituir, assinadas por “Monte”, nas quais se exigia elevadas quantias
que coincidiam com os talões dos cheques de uma caderneta encontrada no cofre
aberto, constatando-se, por consulta ao banco, que haviam sido levantados sem
possibilidade de identificação do detentor, já que o gerente contactara
telefonicamente o depositante que, prontamente, confirmara a ordem de
pagamento. Descobri, caída debaixo da
secretária, uma folha solta de passaporte; ainda que mutilada, continha a
fotografia, nome e naturalidade de Hans Hentschel, tendo-me sido impossível
descortinar em qualquer parte o resto deste importante documento. O cofre continha vários
documentos sem valor, moedas e notas várias de pouca importância, um envelope
de grande formato contendo a foto de um oficial alemão (a vítima) ostentando
diversas condecorações e datado de 1942. Ninguém presenciara
directamente a tragédia. Os dados mais consistentes foram fornecidos pelo
antigo proprietário da moradia, o sr. Joaquim Mata, cujo depoimento encerra
uma estranha história. Disse que por volta de 1944, sem dinheiro e sem
família e com idade a pedir descanso, vendera a propriedade, por intermédio
de um procurador, ao sr. Hentschel, ficando a habitar um pavilhão do jardim,
que mobilara para esse fim, conforme escritura lavrada no notário. O novo
proprietário era um indivíduo pouco sociável, nunca saía e raras vezes lhe
falara, se bem que falasse português com facilidade. Um criado, também
alemão, fazia todo o serviço caseiro, bem como as compras necessárias no
exterior. Este faleceu em Outubro do ano anterior e, ele, Mata, cegara pouco
depois. A sua cegueira era irreparável e aguardada conforme informação médica
anterior. Os primeiros tempos foram horríveis de suportar, sem um só gesto de
ajuda do vizinho. Valeu-me posteriormente a
solicitude do novo criado, Armando Ricardo, um homem acessível que a justiça
atirara para a prisão durante quinze anos e que aceitara o emprego poucos
dias após a libertação, exactamente pelo isolamento do local. Não se mostrara
receptível ao contacto público. O patrão proibira-o terminantemente de lhe
falar logo ao segundo dia da sua chegada e vigiava o cumprimento dessa
proibição, pressentia ele. Nada mais sabia da sua vida, embora Armando
encontrasse maneira de lhe deixar à porta o indispensável ao sustento que, em
regra, pedia telefonicamente. Hentschel mostrava-se cada
dia mais rabugento, verdadeiramente intratável. Ouvia-o passear no jardim dia
e noite, atirando pontapés a tudo o que se lhe deparasse no caminho, entregue
ao terrível vício de mascar tabaco continuamente. Tratava o novo criado por “Ich”
e seguia-o com sonoras gargalhadas. Resmungava vinganças, em voz surda, para
si próprio, falava em “Monte”, ou “Morte”, em “chantagem”, ria como um louco,
dizia-se “diante de um espelho”, repetia a frase e ria, ria muito. Chegara a
temê-lo, principalmente quando se punha a gritar em “estrangeiro”! Naquele dia ouvira-o chamar
por Armando repetidamente. Não sabia se o encontrara, mas a meio do dia
ouvira um tiro abafado. Tudo estava num silêncio profundo. Receando qualquer
anormalidade ou por uma espécie de pressentimento, dirigira-se, tacteando, à
casa. Não obtivera resposta aos seus chamamentos de quem quer que fosse. O
silêncio assustara-o, voltara para o pavilhão e telefonam. E terminara: – Oh! Armando deve ter
abalado ontem à noite, farto desta vida, com toda a certeza! Ainda bem que o
fez porque, apesar de não o conhecer bem, pressentia que era um homem bom que
pagara à sociedade o seu crime, fosse ele qual fosse. Hentschel era um tirano. É tudo. Mesmo antes de obter
a confirmação que as impressões digitais encontradas na arma bem oleada eram
exclusivamente da vítima – arma, aliás, averbada em seu nome –, tudo indicava
que fora disparada com o dedo mínimo do pé descalço; que os pingos de sangue
encontrados nos sapatos eram igualmente da vítima, bem como todas as impressões
digitais detectadas no cofre. Antes de confirmar tudo isso eu tinha formado
uma teoria que reduzi a relatório e, afinal, se mostrara correcta. O problema que se punha era
de vastas hipóteses: admitir o suicídio como tudo indicava; o homicídio
perpetrado pelo desaparecido Armando, farto do alemão ou por roubo; assalto
por pessoa ou pessoas desconhecidas ou pelo “chantagista”, nos dois últimos
casos disfarçando o crime, etc… Qual a opinião dos meus
queridos amigos e leitores, e porquê? Pensando bem, excluindo
todo o raciocínio e encaixe dos vários detalhes, se a polícia tivesse em
princípio procedido a uma elementar operação técnica, teria solucionado todo
o trama. Qual era essa operação? |
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© DANIEL FALCÃO |
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