Autor Data Julho de 2004 Publicação (em Secção) |
PRENDAM ESSE CEGO! M. Constantino O
cego era um homem de meia-idade. Pobremente vestido, porém de aspecto limpo. Tomara
poiso habitual perto do Banco dois meses antes. Ele e o impassível cãozinho
que o guiava. A
sua humildade e simpatia conquistara de imediato os funcionários daquele.
Acostumara-se a bater de mansinho na porta semi-aberta,
antes da abertura ao público, era convidado a entrar, e recebia com
humildade, sorriso nos lábios, uma pequena moeda de cada um, uma maior parte
do gerente. Naquele
dia o cego entrou como de costume. Mas não havia cão a guiá-lo: uma máscara
tapava-lhe o rosto e, não mão firme, mostrava uma automática reluzente. Atónitos,
ninguém fez um gesto. Cerca de 3000 contos que haviam sido tirados do
cofre-forte para os pagamentos previstos no dia, foram atulhar-lhe os largos
bolsos. Recuando
o homem atirou para o meio da sala deserta um saco enrolado e avisou que
continha uma bomba que rebentaria dentro de segundos. Todos
de lançaram para o chão na ânsia de escaparem à deflagração em perspectiva. Quando,
por fim, o alarme foi accionado, um carro, cá fora,
acabava de arrancar a grande velocidade. Escassos
minutos depois, a polícia chegou. Não havia bomba. O
Cego acabava de chegar ao poiso habitual com o fiel cãozinho. Sem dinheiro e
sem pistola. Calmamente
preparava-se para o peditório diário. Arrastado
ao Banco, posto em confronto com os funcionários do mesmo, nada de concreto
se concluiu. O homem seria mesmo cego. Naquele dia não entrara no
estabelecimento bancário. O seu guia adoecera, demorara-se? Não quisera
incomodar. O
cão tristemente encolhia o rabo entre as pernas… confirmativo. Nenhum
transeunte, num dia infelizmente escasso de passantes dera pelo roubo. Nenhum
indício. Começara
a duvidar-se se alguém não se fizera passar pelo cego. Mas
o inspector era um homem paciente. Conhecia toda a
espécie de truques da sua profissão e das alheias. Desconfiado
se não estaria face a um falso cego, espreitou o homem de longe, estudando os
seus movimentos, as suas atitudes. Passou-se diante, silenciosamente, parou
na sua frente e, de imprevisto, levantou a mão rapidamente chegando-lhe dois
dedos espetados nos olhos. O olhar deste nem tremeu. Afastou-se
e voltou a passar-lhe perto atirando para os seus pés uma moeda de elevado
valor. Foi espreitar de longe. O cego, entretanto, nem se mexera: aguardou
que um transeunte passasse perto e pediu-lhe para apanhar o dinheiro. Persistiu.
Mandou notificar o cego para comparecer no dia seguinte na esquadra, a fim de
assinar um depoimento. Acompanhou-o,
de longe, no percurso. Era
como que o cerco dum caçador a um animal condenado. Viu
o homem aproximar-se. Parar um instante no cruzamento, acender o cigarro,
aguardando o sinal verde do semáforo, incitar com um ligeiro toque de rédea o
cão guia e atravessar. Ouviu
a seca resposta do polícia de guarda à porta. –
Suba. Segundo andar, terceira porta à direita! Antecipando-se,
subiu a íngreme escada cujo corrimão ostentava flagrante cartaz: “Atenção:
Pintado de fresco”… Quando
o notificado entrou o inspector ficou a observar o
homem ajeitar-se com à vontade na poltrona cruzando, em expectativa, as mãos
brancas e limpas, esperar. O
cão deitou-se a seus pés. Prolongou
com propósito o silêncio… De
repente indagou: – Sabe ler? –
Braille sim, mas apenas um pouco – respondeu o visado com timidez. Pegou
num cartão perfurado e apresentou-lho. O
cego passou os dedos pelo pontuado e, vacilante, leu meia dúzia de palavras. Então,
recolhendo abruptamente o cartão leu uma folha de papel, com cujo conteúdo o
seu ouvinte concordou. Guiou a mão do cego até ao local onde devia assinar… Trocaram
meia dúzia de banalidades. Pouco
depois o cego saiu e o desconfiado inspector deu um
salto na cadeira: –
Prendam esse cego que acaba de sair! Que
factos levaram o inspector a tomar tal atitude? |
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© DANIEL FALCÃO |
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