Autor Data Março de 2005 Competição I
Torneio Policiário “O Lidador… das Cinzentas” Prova nº 5 Publicação (em Secção) |
O MISTÉRIO DO PUNHAL DE OURO M. Constantino Não
foi "como por acaso" que conheci a existência da lâmina maldita.
Sou representante da segurança na cidade, mas não intangível. No acto de extracção de uma bala
vim a conhecer o Dr. Morais Costa, médico – director
– proprietário do hospital, um excelente homem de cerca de 60 anos. O
conhecimento deu em convivência diária e franca amizade. Surpresa foi que,
após breve estágio em França, me apareceu com "mercadoria" anormal.
Uma esposa, Eva, de que não fez segredo, e uma arma de contrabando, esta sim,
um segredo. Eva,
uma luso-descendente loura, olhos verdes, enfermeira no local do estágio, 30
anos de beleza, princesa de muitos mas rainha de ninguém. O médico mordeu a
maçã, quedou-se de dentes cravados. A confissão de ser uma viciada no remédio
recomendado no Século XVIII por Zacuto Lusitano, com o qual curou a
debilidade proveniente de dispepsia, motivou uma gargalhada. Viciada ou não,
ficou. Assíduo
frequentador da casa, uma breve saída de Eva foi ensejo para exibir a
"mercadoria" escondida. Vejo, com assombro, o punhal de ouro,
pousado num estojo de aço, do qual só o médico tinha a chave, uma espécie de
cruz invulgar, pendente de um fio de platina, ao pescoço. Confiou-me que Eva desconhecia
o assunto, A arma adquirida a um desconhecido, com a condição de a fazer sair
do país, foi, confidencialmente, examinada por um perito. Lembrou-se da minha
faceta de coleccionador e tencionava ofertar-ma
logo que passasse o perigo de ser contactado. Aliás, um advogado tinha uma
carta assinada e autenticada, com instrução para me entregar o estojo e a
chave, em caso extremo. Sem chave era impossível abrir o estojo-cofre, pois
qualquer tentativa faria disparar um mecanismo tranca. A
arma ocupava o espírito, porém, notava que Morais dava mostras de cansaço.
Soube que não era raro, após o jantar, sentar-se no sofá, acender o charuto
do dia, tomar um "Porto" servido por Eva e adormecer. Eva
desabotoava-lhe a camisa no pescoço e apagava-lhe o charuto… Entretanto,
Eva recebia lições de equitação de Luís, canto com Aldo e, por fim, pintura
com Celso, estas no amplo sótão da habitação transformado em estúdio. Eva
subia, entusiasmada, com a gabardina repleta de tintas, qual camuflagem,
sobre as roupas interiores. Tomar
posição? Os homens, por mais amigos, jamais perdoam a quem lhes revela certas
realidades. Os acontecimentos somavam-se. Certo dia um auto-proclamado
Dr. Dinis procurou o Director em casa, pois queria
integrar-se nos clínicos locais. Tive a nítida convicção de que Eva e Dinis
se reconheciam, o que não agradava à mulher. Segundo Rosa, a criada minha
informante, começaram a chover telefonemas que Eva recebia mal. Numa noite em que Morais estava de serviço,
apareceu Dinis. Discutiram: ouviu falar em bigamia e num convite, quase uma
ordem, para o acompanhar. Eva foi ter com Celso ao sótão e desceram. Este
olhou Dinis com ódio, mas o médico limitara-se a mastigar o resto da banana
que tirara da fruteira. Saído Celso, seguiu-se-lhe Dinis, após o que Eva
avisou Rosa de que ia tomar ar, não demoraria. A
criada ouviu o carro sair da garagem. E, com efeito, cerca das 22h00 entrava,
pouco mais de uma hora, calculou, despiu a gabardina, vestiu um roupão,
chegando-se à lareira, calma. Saía
na manhã seguinte, quando deparei com Morais. Operara toda a noite e quando
pensava ir descansar, o carro, gelado, não pegou… lembrou-se de que eu o
podia levar a casa… Deliciado pelo encargo, preparava-me, quando o telefone
soou: era urgente a presença na moradia do Dr. Dinis Fortes, pois este fora
encontrado morto pela mulher da limpeza. Morais
instou em acompanhar-me. Na zona pouco habitada evidenciava-se o aparato
policial. Entrei com uns "bons dias, minha gente", mas as palavras
ficaram-se-me na garganta. Olhei alucinado o corpo: o punhal que há pouco
tempo vira num estojo de aço atingira o braço e, parcialmente, o pescoço da
vítima, coberto de sangue, e jazia, cravado, talvez no coração. Voltei-me.
Morais ficara estático, branco como a cal. Não reagi; deixei o legista e os
técnicos entregues às várias tarefas, e arrastei-o para fora de casa,
abrindo-lhe a porta do meu carro. Transpirava. Começaram
a chegar informações: – "Não houve arrombamento nem roubo; impressões
digitais da vítima e da sra. da
limpeza nos móveis; há duas chávenas com chocolate, por beber, sobre a mesa,
com impressões digitais só do morto; a mancha de tinta no braço atingido é
vermelha escura de cádmio; o carro coberto de neve, à porta, da casa,
pertença da vítima, ainda se mostrava morno da "chauffage", o tampo
foi rebentado, decerto para roubar a gasolina, de que está vazio; o médico
estima a morte para duas/três horas antes, ainda que o calorífero eléctrico tenha, eventualmente, influência na determinação;
corte na garganta, género machadada, amparado com o braço, não bastante para
provocar morte imediata, ainda que esguichasse bastante sangue, a juntar ao
estoque na zona do coração, esse sim, fatal." Mandei
o agente ao hospital com ordens para telefonar os resultados e dirigi-me ao
carro, cheio de dúvidas íntimas para com o meu amigo. Não falámos. Tomei o
caminho de sua casa. Fomos em busca do estojo; Morais tirou a chave do estojo
e abriu-o… Vazio! Ouvi, como que ao longe, o grito: – “Não fui eu, juro!” Fotografei
a única impressão digital visível no estojo, e recolhi-a depois pelo processo
de papel gelatinado. Na secretária, algumas impressões, de tipos diferentes,
inclusive a do estojo, voltei a fotografar. Subi ao sótão. Várias telas
utilizadas, atiradas para um canto; no cavalete uma tela recente representava
uma maçã "vista bella", não concluída.
Fotografei-a, bem como as impressões digitais existentes nos pincéis,
voltando a utilizar o processo da recolha directa.
Desci. Eva ainda estava no quarto, Morais atirara-se para um sofá como um
farrapo. Pedi a Rosa a impressão dos seus dedos e um objecto
em que pudesse extrair as de Eva. Trabalho difícil, paciente e compensador. A
impressão digital no estojo era de Celso. Imediatamente
telefonei para mandar apanhar, não só Celso, mas o trio. Obriguei Morais a ir
para a cama e tomar um sedativo; recomendei-lhe silêncio sobre o caso,
igualmente a Rosa. Voltei à Sede da Polícia, morto por dentro, vivo por fora.
Entretanto, o agente que voltara do hospital apurou que o Dr. Morais entrara
ali às 20 horas, de onde só saiu às 8 daquele dia, tendo sido testemunhada a
sua localização total dentro do hospital durante este período. Foi confirmado
que o carro não pegava. Tudo demasiado certo. Por certo haveria uma falha… Só
rente à noite me chegou o resultado da autópsia que, com base na deglutição
dos alimentos, neste caso uma banana, situava a
morte entre as 22h00 e as 24h00 – contrariando as observações no local, que
apontavam para uma hora intermédia entre as 6h00 e as 8h00, confirmado,
aliás, pelo ambiente de calor dentro do carro. Bem sei que a hora da morte só
pode ser apurada no campo das probabilidades... mas
enfim… Não entro em conjecturas, gosto de certezas. Lembrei-me
então de um vestígio importante, decisivo, que não me ocorrera enquanto
estive em casa de Morais. Mandei-o recolher e entregar no Laboratório, como
aliás tinha procedido com todo o material que resultara das minhas
diligências. O
resultado do interrogatório do trio era um impasse, um álibi sustentado em
conjunto, se bem que no veículo de Celso fosse encontrada uma lata de
gasolina extra programa. E
ali estava eu, com bastante lenha para queimar e me queimar… Ia apostar no
número certo. Congratulava-me por o punhal estar a bom recato! É
altura dos meus caros detectives se pronunciarem,
em relatórios devidamente fundamentados, descrevendo o que e como aconteceu. |
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© DANIEL FALCÃO |
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