Autor Data 20 de Abril de 2012 Secção Correio Policial [29] Publicação Correio do Ribatejo |
AMORAS E PÃO M. Constantino O
cavalo entrou em galope cadenciado, pelo atalho, no restolho do trigo. Uma
perdiz solitária, apressada, atravessou o carreiro, ergueu-se em voo rasante,
para poisar fora da vista. À
direita, o olival. O “Olival do Caroça”. A esquerda, meia dúzia de pinheiros
raquíticos. Avô
“Palaló” – um homem de estatura média, largo de
corpo, rosto curtido e inteligente – semicerrou os olhos, olhando ao longe
contra o sol. Aconchegou o cajado de junco entre a sela e a perna. Apertou os
joelhos ao peito do pigarço. O animal espirrou abanando a cabeça e meteu a
passo. Subitamente relinchou, dando um passo para o lado. O homem aguentou a
guinada brusca, o cajado apareceu na sua mão descendo como um raio em
vertical à terra, esmagando a cabeça da ziguezagueante cobra, origem do acidente,
ao mesmo tempo que aquietava o animal. Deixou que a ponta do pau, reforçada a
ferragem, deslizasse pelo chão seco, limpando-o antes de o colocar no lugar
inicial. O
rosto não mostrou qualquer emoção. Atravessando
um pousio curto, tomou o caminho areento das carroças, ladeado pelo silvado
dos valados, de grossas e negras amoras. Quando
atingiu o aglomerado de figueiras onde os porcos procuravam os frutos caídos,
ouviu os gritos da mulher que perseguia o miúdo. –
Anda cá mê malandro! Vou fazer-te
em fanicos… –
Deixe m’lher! Raios a partam… –
T’a ceguem a ti, velhaco. –
Alto aí, pessoal! – interrompeu o avô – Que se
passa? –
O fodelho
roubou-me o farnel, patrão; comeu-me o rico chouriço! Meia quarta! Eu qu’a semana inteira comi petingas… De
cima do cavalo, o homem olhou o rapaz: doze anos franzinos (no máximo!), cara
esperta, pálida, lábios descorados, roupa remendada, pobre e asseado, mãos
muito brancas e limpas de dedos habilidosos e longos, gesticulando, tentava
explicar: –
Mêmo
agora, comi pão com amoras… só pão e amoras… veja,
veja… – e apontou o silvado. –
Calma, calma! Vamos lá, – atalhou o avô – tens estado doente rapaz? Essa
cara… Ante
a resposta afirmativa, voltou-se para a queixosa: –
Onde tinhas o diabo do petisco, Maria? A
mulher apontou para a pequena nogueira ao lado do poço, enquanto o cavaleiro
amarrando o cavalo a um pé de videira, se deslocava ao local indicado. Entretanto,
o guarda rural aproximou-se indagando do sucedido. –
Parece que fizeram uma partida aqui à cachopa! E explicou. –
Gaita, gaita! Chouriço, anh? – riu
o homem. Avô
parou e perguntou-lhe: – Olha lá, por onde tens andado, Eziquel? –
Não me diga que pensa que gamei o
embrulho! –
Tu não, mas talvez esse canzarrão que te acompanha. O
guarda olhou para o cão, em dívida, e encolheu os ombros. Dirigiram-se os
três para o poço. O moço afastou-se para o lado dos porcos. O avô, procurando
rastos inexistentes no chão duro à volta da nogueira, pegou no pequeno galho
partido onde estivera pendurado o farnel e olhou em volta. Não
tardou a encontrar o saco azul, intacto… mas vazio. –
Bem me parece que foi mesmo o miúdo. Hoje tens de passar sem almoço… Olha,
não. Vai lá ao cavalo e tira do alforge o meu. Voltou,
porém, para junto do cavalo e ele mesmo passou o pão, toucinho e um bom
pedaço de chouriço à mulher. Depois gritou para o pequeno porqueiro: –
Olha rapaz! Diz a teus pais que vão lá a casa contigo. Gostava de falar com
eles… O
miúdo fez que não ouviu. Disfarçadamente atirou com um torrão a um porco mais
distante. Trinta
e tantos anos se passaram. O avô, era meu avô. Não
gostava que lhe chamassem “Palaló”. Sem motivo,
aliás. A alcunha, como um dia contarei, tinha muito a ver com a sua gigante
luta para se tornar no homem destemido, honrado, trabalhador, muito
respeitado, que foi. De seu nome completo M. B. A., sublinhava-o
orgulhosamente. Bom homem. Bom avô. Lembro-o com um misto de nostalgia,
admiração e veneração. O
pequeno porqueiro é hoje um homem pobre. Encontramo-nos frequentemente e
fala-me do “chouriço da Maria”. Não se esquece como o avô descobriu que não
fora o cão, mas ele, quem o comera. E
vós, amigos? São capazes de justificarem as afirmações do avô? |
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© DANIEL FALCÃO |
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